Como se fossem cavaleiros do apocalipse, dois personagens foram trazidos ao convívio de inúmeras famílias gaúchas pela crise econômica que assola o Brasil, em particular o Rio Grande do Sul: o agiota e o cobrador de contas.
Por serem crias da periferia do caos da economia, eles raramente frequentam os noticiários, que são dominados por governo, empresários, sindicalistas, consultores e professores da academia. O agiota e o cobrador giram ao redor das famílias, principalmente as de baixa renda. O desafio para o jovem repórter é encontrar esses personagens anônimos da crise e mostrar o cotidiano deles.
Como jornalista, esta não é a primeira crise que estou vendo: tenho 66 anos, 40 como repórter estradeiro. Mas é a primeira que estou vivendo fora da redação de um jornal, portanto sem a pressão de precisar escrever apressadamente a reportagem e publicá-la.
Isso tem me dado mais tempo para conversar com muitas pessoas. Sem me identificar, tenho me alongado nestas conversas. E o que tenho ouvido não tem comparação com o que aconteceu em outras crises.
Por exemplo: o atraso no pagamento dos salários dos funcionários públicos do Estado criou um ambiente totalmente novo na categoria. Na semana passada, encontrei no supermercado um velho professor de história do ensino médio público. Homem de saber invejável, conversa interessante e bom tomador de cerveja, nós falamos durante mais de uma hora. Ele resumiu a situação dele:
– O salário vem fatiado, as contas, não. Para pagá-las, primeiro gastei a poupança, depois peguei dinheiro emprestado com amigos e parentes. E agora busquei aos agiotas.
Liguei para um conhecido, um oficial da P2 – serviço de inteligência da Brigada Militar (BM) – e acertamos uma cerveja com batatinha frita no final da tarde. Depois de uma conversa fiada, perguntei-lhe sobre os efeitos do salário fatiado nas tropas da BM.
– A merda não é maior porque a tropa tem o bico (serviço extra) e o agiota para pegar dinheiro – resumiu.
Como herança dos tempos de redação, conheço vários agiotas – eles são boas fontes. Liguei para três deles e conversamos sobre o momento atual. Contaram que os negócios estão em alta. Mas, diferentemente de outras crises, os riscos são grandes devido ao enorme endividamento dos seus clientes.
Os juros que o agiota cobra não tem tabela – pode ir de 20% a 40% ao mês. Um dos agiotas, um homem velho que opera em escritório nos arredores da estação rodoviária de Porto Alegre, disse uma coisa interessante. Ele cobra um juro menor dos seus clientes de longa data – pessoas que vez ou outra pegam dinheiro para pagar uma eventualidade.
Uma cena a que tenho assistindo diversas vezes durante o mês: clientes com o limite do cartão de crédito estourando na hora do pagamento das compras no caixa do supermercado. Na semana passada, uma senhora não conseguiu esconder as lágrimas quando precisou retirar alguns produtos do rancho para adequar a despesa ao saldo do cartão. Ela olhou para mim, eu comecei a mexer no celular para mostrar que não estava interessado no assunto.
Estou procurando um caminhonete para comprar e, atento aos anúncios, esbarrei em um que me chamou a atenção. Um revendedor “picareta” prometia comprar e pagar à vista carros com dívida. Liguei para ele e o que ouvi me fez cair os butiás dos bolsos, como costuma dizer o repórter Nilson Mariano. Ele quita o carro com o banco e não reembolsa as prestações já pagas pelo proprietário. Baita negócio, para o picareta.
Andei conversando com os cobradores de contas – conheço alguns que são minhas fontes. Aqueles vinculados a escritórios de advocacia estão ganhando dinheiro atuando no setor de veículos e outros bens retomados. Os autônomos têm bastante trabalhando buscando os clientes dos mercadinhos que estão em atraso com suas contas. Quem ganha dinheiro com a crise é uma boa matéria.