A disputa polarizada que se anuncia na eleição presidencial entre o presidente Jair Bolsonaro (PL) e o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT-SP) está fazendo renascer uma das mais antigas tradições do interior do Rio Grande do Sul: “atar uma carreira entre os candidatos”. O que isso significa? A explicação está na história da formação do Estado. Nos tempos das revoluções internas e das guerras dos gaúchos contra argentinos, uruguaios e o Império do Brasil, sempre que havia dúvida sobre qual cavalo era mais rápido os seus donos combinavam uma corrida. Daí vem o termo “atar uma carreira”. Essa corrida acontecia em uma cancha reta, numa extensão de mais ou mesmo 450 metros, com trilhos abertos na grama pelos cascos dos animais. As torcidas se postavam nos lados opostos da pista. Os gaúchos têm uma longa tradição em apostas. O hábito de apostar em candidatos em eleições teve o seu período de ouro no primeiro governo de Getúlio Vargas (1930 a 1945). Vargas criou o Partido Social Democrático (PSD) e o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB). Costumava-se dizer que o PSD era o braço direito de Vargas e o PTB, o esquerdo. Os dois eram adversários ferrenhos.
Com a queda de Vargas, em 1945, houve uma proliferação de partidos. Foram todos extintos pelo Ato Institucional nº 2 (AI-2), baixado em outubro de 1965 pelas Forças Armadas, que assumiram o poder no golpe militar de 1964 e o mantiveram até 1985. No mesmo ato, os militares estabeleceram as regras que permitiram a criação de dois novos partidos: surgiram assim o Movimento Democrático Brasileiro (MDB), de oposição ao regime, e a Aliança Renovadora Nacional (Arena), situação. A Constituição de 1988 deu liberdade para a criação de partidos. Quem se interessar, pode montar um, desde que cumprida a legislação. Atualmente existem 35 partidos no Brasil. Na maioria das eleições que ocorreram de 1979 até hoje, ou eu fazia parte de uma força-tarefa da redação que estava envolvida na cobertura do pleito, ou eu me envolvia por conta própria, acompanhando o andamento das articulações políticas para estar bem informado. Isso quer dizer que sempre estive por perto. Até o presente momento, janeiro de 2022, a próxima eleição presidencial é uma das poucas, nestas últimas três décadas, que está mobilizando com grande intensidade os eleitores do interior gaúcho e dos seus descendentes que vivem nas fronteiras agrícolas. Uma explicação que julgo necessário. As fronteiras agrícolas são vastas extensões de terra que foram povoadas a partir da década de 70 por agricultores, principalmente gaúchos e seus descendentes. Elas começam no oeste catarinense e paranaense e se estendem pelo Mato Grosso do Sul, Mato Grosso, Goiás, Rondônia, Roraima, Pará, Amazonas (parte sul) e pelos países vizinhos Paraguai, Bolívia e Argentina.
Por conta dessa polarização entre os dois candidatos à Presidência da República existem as conversas sobre apostas. Já vi coisa semelhante acontecer. Nos meus mais de 40 anos de repórter fiz várias matérias sobre as apostas feitas durante as eleições. Aprendi que a moeda usada pelos apostadores são os produtos que têm maior valor comercial na região, como sacas de soja, suínos, frangos e a prestação de serviço na lavoura. Nas cidades mais tradicionais do território gaúcho, como as situadas na fronteira com o Uruguai e a Argentina, é costume criadores de gado e agricultores se reunirem informalmente no café. Nesses encontros discutem política, futebol e outros assuntos. E também fazem apostas. Na região da soja, que começa no norte do Rio Grande do Sul e se estende pelas fronteiras agrícolas povoadas por descendentes de gaúchos, a conversa ocorre nos fins de semana, durante o “churrasco do futebol”. Soube que as apostas em Bolsonaro e Lula estão sendo articuladas porque, na semana passada, estive viajando pela região de Passo Fundo, importante cidade agroindustrial e comercial cercada por duas dezenas de pequenos e médios municípios produtores de grãos e carnes. Por conta dessa conversa, eu liguei para fontes que tenho espalhadas pelas fronteiras agrícolas. Conheço muita gente por lá em razão de uma série de reportagens que depois transformei em livros: Brasil de Bombacha (1996), O Brasil de Bombachas – As novas fronteiras da saga gaúcha (2011) e De pai para filho na migração gaúcha (2019).
Pelo que conversei com os conhecidos e fontes nessa região, a persistir a atual polarização entre Bolsonaro e Lula, as conversas sobre apostas devem se transformar em jogo lá por julho. Hoje ninguém arrisca um palpite sobre quem vai ganhar. Aqui cabe um comentário. A cobertura das eleições pelos jornais nos dias atuais se restringe a Brasília (DF) e, no máximo, aos grandes centros urbanos, como São Paulo. O resto do Brasil é o resto. Já era antes, quando havia abundância de repórteres e dinheiro nas redações. Hoje, quando faltam dinheiro e jornalistas, as eleições no interior do Brasil só merecerão uma notícia de pé de página se der um grande rolo. A região que citei não é um rincão abandonado. Concentra uma das principais atividades econômicas do país, o agronegócio. A história das apostas, caso se confirme, será uma boa pauta lá pela metade do ano. Não espere encontrar chifre em cabeça de cavalo. Mas fatos interessantes a serem relatados para os leitores. Os moradores do interior do Rio Grande do Sul e os seus descendentes que povoaram as fronteiras agrícolas são bons na articulação política. Propositalmente não estou entrando nas entranhas da história que estou contando sobre as conversas sobre as apostas porque elas ainda não são definitivas. Mas existem e precisam ser acompanhadas. Assim é o jornalismo. Tudo começa com uma conversa que desperta o interesse do repórter. E o fato é que os gaúchos do interior estão “atando a eleição do Bolsonaro com o Lula”. É um bom começo.