Ninguém me falou. Eu fui testemunha. Nas últimas três décadas as lideranças das associações dos policiais militares do Brasil investiram em um árduo e arriscado trabalho de conscientização política das suas bases. Não foi um trabalho fácil, por dois motivos: primeiro porque a Constituição Federal proíbe que tenham sindicatos. Foi por isso que se disfarçaram em associações. O segundo motivo não está na lei. Mas existe. É a lavagem cerebral a que são submetidos ao ingressarem nas escolas de formação de policiais – há várias matérias sobre o assunto disponíveis na internet.
As associações de policiais militares apostaram as suas fichas no candidato Jair Bolsonaro ainda no começo da campanha, quando as chances dele ser eleito eram mínimas. Foi uma aposta grande. Segundo um levantamento feito pelo site G1, da Globo, com informações do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), nas eleições de 2002 a categoria concorreu com 660 candidatos, e em 2018, com 1.137. Nas eleições de 2014 elegeu 18, e na de 2018 foram eleitos 73 policiais militares para as Assembleias Legislativas, a Câmara dos Deputados e o Senado. Isso significa um número quatro vezes maior. Dos eleitos, a maioria, 43, foi pelo PSL (na época o partido de Bolsonaro). Perguntei ontem (21/02) a um veterano líder da categoria o seguinte: “Os candidatos de vocês foram eleitos por que surfaram na onda do Bolsonaro?”. Ele respondeu: “Não, nós ajudamos a construir a onda buscando votos em todos os cantos do país, onde existia um policial militar tinha um cabo eleitoral do Bolsonaro”.
Antes de seguir contando a história, eu chamo a atenção dos meus jovens colegas das redações. A capilaridade das policiais militares no Brasil é um fato, como testemunhei fazendo reportagens pelos sertões do Brasil nos últimos 40 anos. A velha guarda das lideranças eu conheci nos anos 80, quando andava pelo interior do país cobrindo conflitos agrários entre agricultores sem terras e fazendeiros e entre garimpeiros e índios. Nos anos 80, os policiais militares bloqueavam as estradas para impedir que os repórteres chegassem ao local do conflito. Daí era preciso descobrir rotas alternativas. Os atuais líderes, eu os conheci no final dos anos 90, fazendo cobertura de greves e manifestações de trabalhadores e estudantes nas cidades. Por terem informações diretas do meio da tropa, geralmente eles têm muito mais detalhes dos acontecimentos do que os comandantes dos batalhões. Lembro que no auge dos protesto de 2013, que entraram para a história como as Manifestações dos 20 Centavos, quando ninguém sabia exatamente o que estava acontecendo, as lideranças dos PMs tinham um quadro nacional bem detalhado dos fatos.
Voltando à história. Consultei cinco lideranças da categoria espalhados pelo país sobre a aliança política com Bolsonaro. Dois deles lembraram que durante o governo do presidente Michel Temer (MDB-SP) tinha realizado um sonho da categoria, que foi a criação do Ministério da Segurança Pública. “A existência do ministério facilitava a visualização pela população das questões de segurança”, falou um deles. Acrescentando: “Para nossa surpresa o Bolsonaro acabou com o ministério”. Lembrou que, na reforma da Previdência Social, o presidente lavou as mãos e os deixou sozinho. E precisaram lutar muito para conseguir ter direitos semelhantes aos das Forças Armadas.
Perguntei a todos os cinco o que achavam do motim do Ceará, onde a Polícia Militar está engalfinhada em uma luta salarial com governo do Estado. No último dia 19, o senador licenciado Cid Gomes (PDT) levou dois tiros ao tentar invadir com uma retroescavadeira um quartel da PM que estava ocupado por grevistas. O caso virou notícia ao redor do mundo. Cid se recupera no hospital. Além disso, policiais militares mascarados furtaram viaturas e se envolveram em atos de vandalismo. As lideranças acreditavam que o governo federal iria mandar negociadores para ajudá-los a isolar do movimento dois políticos que são apontados como os responsáveis pelos atos de radicalização e vandalismo: o vereador Sargento Ailton e o Cabo Sabino – ex-deputado federal. Dois apoiadores de Bolsonaro – há matérias na internet. “O presidente mandou as tropas federais e tratou a todos como iguais. Isso fortaleceu o lado dos radicais”, falou uma das lideranças.
Além do Ceará, os policiais militares estão negociando salários em outros 12 estados. Temos noticiado que a vinculação política do presidente com as polícias militares pode influenciar na radicalização do movimento. Precisamos analisar de perto para saber qual é a solidez desses vínculos. Hoje, na opinião das lideranças, eles estão reduzidos a pequenos grupos que tentam se tornar referência no movimento se radicalizando. É uma situação perigosa, como bem mostra o caso do Ceará.