Independentemente do destino final que terá a Proposta de Emenda Parlamentar (PEC) que pretende reformar a imunidade parlamentar dos deputados e senadores, ela já fez história e a imprensa precisa realizar uma autópsia para explicar aos leitores o que há dentro dela. E de quem são as digitais na PEC. A situação hoje (sábado, 27/02) é a seguinte. O presidente da Câmara, Arthur Lira, tentou duas vezes, na quinta e na sexta-feira, aprová-la no plenário e não conseguiu. Então resolveu criar uma comissão especial para analisá-la. Vamos à autópsia do fato. Se aprovado o texto original, a PEC aumentará a atual imunidade parlamentar, que já é considerada uma das maiores entre os países democráticos. Daí saíram os seus apelidos: foi chamada pelos jornalistas de PEC da Impunidade, por Arthur Lira, de PEC da Democracia, e por parlamentares contrários, de PEC Daniel Silveira, menção ao deputado federal bolsonarista do Rio de Janeiro que está preso por ter feito apologia contra a democracia e disparado um enorme esculacho contra os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) – a história está disponível na internet. A prisão foi decreta pelo ministro Alexandre de Moraes, cumprida pela Polícia Federal (PF) e confirmada pela Câmara. Os deputados decidiram, por 364 votos contra 130, mantê-lo em prisão em uma sessão presidida por Arthur Lira, em 19/02.
Aqui vou interromper a autópsia para fazer dois comentários que julgo necessários para o jovem repórter que está na correria da cobertura diária nas redações, fazendo duas ou três pautas por dia. Portanto, sem tempo para refletir. O primeiro comentário. Mais à frente na conversa vou explicar porque usei no título a expressão “ovo da serpente”. O segundo comentário, que considero mais relevante. Não estamos tratando da questão do aumento da imunidade em crimes de corrupção, como foi o caso da Lava Jato. Ou outros crimes patrimoniais, como a rachadinha – quando o parlamentar pega para si parte do salário pago aos funcionários do seu gabinete. Isso é outra história. Estamos tratando aqui da repetição de crimes como os cometidos pelo deputado Daniel Silveira. Voltamos à autópsia. Houve um clamor público para manter o deputado preso porque o vídeo que ele divulgou contra os ministros do STF é um amontoado de ofensas gravíssimas – há matéria na internet. Ele é ativista da Ala Ideológica do bolsonarismo, que é ligada ao Gabinete do Ódio, como são chamadas as pessoas do círculo pessoal do presidente Jair Bolsonaro (sem partido). Fazem parte do Gabinete do Ódio os três filhos parlamentares do presidente: Carlos, vereador do Rio, Flávio, senador do Rio de Janeiro, e Eduardo, deputado federal por São Paulo.
Aqui chegamos ao xis da nossa conversa. Se o texto original da PEC da Impunidade fosse aprovado ele facilitaria o surgimento de novos parlamentares ao estilo Daniel Silveira. Que estilo é esse? Eles usam o cargo e as brechas oferecidas pela lei para atacar a democracia. Esse tipo de pessoa surge de tempos em tempos na vida pública ao redor do mundo. Eles apareceram na Alemanha logo depois do fim da Primeira Guerra Mundial (1914 a 1918) e se organizaram no Partido Nazista. Todo esse ambiente é magistralmente mostrado em um filme de 1977, chamado O Ovo da Serpente, dirigido pelo sueco Ingmar Bergman (1918-2007), um gênio na arte de contar história. É muito comum encontrar nos textos de antigos jornalistas a expressão “ovo da serpente” para descrever um fato plantado dentro de um organismo para corroê-lo. Os nazistas corroeram as instituições alemãs por dentro depois de se elegerem. E deu no que deu. Hoje (sábado, 27/02) ninguém sabe qual será o futuro do Brasil. O país está atolado em uma crise sanitária provocada pela pandemia da Covid-19 e agravada pelo presidente Bolsonaro, que transformou o seu negacionismo em relação ao poder de contágio e letalidade do coronavírus em uma política de Estado que já matou mais de 250 mil brasileiros. O ministro da Economia, Paulo Guedes, e sua política neoliberal virou uma caricatura no governo. O país tem oficialmente 15 milhões de desempregados, na prática são mais de 25 milhões. O desemprego já passava dos 13 milhões antes da pandemia. Em um ambiente como esse, parlamentares do perfil de Daniel Silveira podem corroer as instituições por dentro caso não tenham mecanismos legais que sejam usados para proteger o Estado de Direito.
A quem interessa a proliferação de deputados do perfil de Daniel Silveira? A digital dessa pessoa está na organização da PEC da Impunidade. Essa PEC foi organizada às pressas e a tentativa de votação foi a jato. O deputado Arthur Lira justificou a afobação dizendo que havia feito um acordo com os seus colegas deputados na votação que decidiu pela prisão de Silveira. Não temos porque duvidar das palavras do presidente da Câmara. Agora, podemos lembrar ao nosso leitor que ele é liderança do Centrão, que recentemente tornou-se base parlamentar do presidente, e homem de confiança de Bolsonaro. A soma de tudo isso aumenta a possibilidade de que esse acordo tenha passado pela mesa do presidente da República. Em tempos de normalidade econômica e social, deputados como Daniel Silveira passariam despercebidos. Foi assim durante três décadas com Bolsonaro, quando ele era parlamentar pelo Rio de Janeiro. Capitão reformado do Exército, ficou durante quase 30 anos pregando a volta dos militares ao poder, elogiando torturadores de presos políticos durante a ditadura militar (1964 a 1985), prometendo fechar o STF e fuzilar presidentes da República – no caso, Fernando Henrique Cardoso (1995 a 2003). Ganhava manchete nos jornais quando não se tinha nada de importante para noticiar. As bobagens que ela dizia acabaram se tornando relevantes em 2018, quando o país mergulhou em uma crise econômica e política e ele acabou se elegendo presidente.
Todos os fatos que escrevi aqui nós já publicamos. O que fiz foi mostrar a relação entre eles e as dúvidas que deixaram. Por quê? Sei bem como é difícil a vida do repórter quando está começando na profissão. A gente fica meio atrapalhado. E geralmente usa os conteúdos dos analistas políticos para entender o contexto ao seu redor. Lembro-me que quando comecei a trabalhar na profissão (1979), os comentaristas políticos tinham tempo para investir na busca de informações exclusivas junto a suas fontes, que eram abundantes. Escreviam apenas uma coluna por edição do jornal papel que só circularia no dia seguinte. Nos dias atuais, eles fazem colunas para o jornal (papel e site), rádios, TVs e outras plataformas. A maioria deles é auxiliado por uma equipe de jornalistas estagiários e repórteres em início de carreira. Essa realidade tornou as colunas políticas mais opinativas do que informativas. O que é um risco para o repórter em início de carreira e sem tempo para separar o que é opinião do que é fato. E os repórteres que fazem cobertura do dia a dia são as vítimas preferidas das milícias digitais. Em 1979, quando comecei, não existiam milícias digitais. Mas existiam as “patrulhas ideológicas” que ligavam para a redação – aquele telefone antigo com os números em um disco – para dizer desaforos para o repórter. Eu ouvia quieto a reclamação. Se era xingamento, no final respondia com um palavrão e batia o telefone. Fiquei famoso na redação por quebrar aparelhos de telefone. Tinha um colega que ficava horas e horas batendo boca com a “patrulha ideológica”. Digo aos meus jovens colegas que em uma conversa civilizada entre o leitor e o repórter, os dois lados sempre ganham. Fora disso, o caminho é a Justiça. Portanto, é importante que o repórter tenha certeza da exatidão das informações que ele tem na mão. O melhor antídoto contra o “ovo da serpente” é a informação correta escrita de maneira simples e direta para o nosso leitor.