Não foram um nem dois. Foram 242 mortos e 680 feridos no incêndio da Boate Kiss, na madrugada de 27 de janeiro de 2013, em Santa Maria, cidade universitária da Região Central do Rio Grande do Sul. O inquérito policial somou 13 mil páginas e indiciou 16 pessoas, entre elas o prefeito da cidade da época, Cezar Schirmer, que depois seria secretário da Segurança do Estado na gestão de José Ivo Sartori (MDB, 2015 a 2018). Pelo incêndio foram responsabilizados e viraram réus os donos da Kiss, os empresários Mauro Hoffmann e Elissandro Spohr (Kiko), e os integrantes da banda Gurizada Fandangueira Marcelo de Jesus e Luciano Bonilha.
O caso está rolando na Justiça há sete anos, para desespero das famílias dos mortos e feridos, que estão organizadas em torno da Associação dos Parentes das Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria (AVTSM). O julgamento dos quatro estava marcado para acontecer em Santa Maria em 16 de março do próximo ano. Na primeira semana de dezembro a defesa de Kiko conseguiu transferir o júri dele para Porto Alegre. Ainda cabe recurso da decisão. Se isso irá alterar a data do julgamento ainda não se sabe. É do jogo os advogados usarem todas as brechas existentes nas leis para empurrem o caso com a barriga em benefício dos seus clientes.
Agora, também é do jogo pressionar juízes, desembargadores e ministros para que façam o processo andar. Afinal das contas, não é um caso qualquer: são 242 mortos e 680 feridos, repito. Eu trabalhei no caso Kiss. A maioria dos mortos era jovens universitários que estavam lá se divertindo sem desconfiar que o prédio fosse uma ratoeira, como mostram as perícias. A maioria morreu asfixiada pela fumaça e pisoteada durante o incêndio. Logo no início do fogo houve uma correria em busca da porta de emergência. Por deficiência da sinalização de indicação do local, muitos correram em direção aos banheiros, onde foram caindo asfixiados no chão e sendo pisoteados pelos outros. Entrevistei vários sobreviventes que relataram o que aconteceu lá dentro. Também vi fotos dos cadáveres tiradas pelos peritos. Foi horrível.
O caso da Kiss perfila-se entre as maiores tragédias ocorridas no Brasil e no mundo. Em setembro, eu estive em Santa Maria no enterro do repórter Luiz Norberto Roese, que era assessor de imprensa voluntário da AVTSM e um amigo de muitos anos. Roese era conhecido como Tigrinho, um apelido que ganhou nos tempos que trabalhávamos na redação da Zero Hora. Era o colega que mais entendia das idas e vindas do processo do caso Kiss. Foi um especialista no assunto. Durante o enterro conversei muito com o pessoal da AVTSM. A maioria são pessoas que, com muito sacrifício, conseguiram dar condições para o filho disputar uma vaga na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Em muitos casos, seria o primeiro “doutor” da família.
Tigrinho sempre me lembrava desse detalhe e também que o processo da Kiss é tão complexo que até os pais das vítimas foram processados pelo Ministério Público do Estado – há material na internet. Sou um velho repórter, tenho 69 anos de idade e 40 e poucos de profissão. Na maioria das vezes, lidei com conflitos agrários envolvendo colonos sem terras, fazendeiros, índios e garimpeiros, acompanhei as migrações de agricultores gaúchos rumo às novas fronteiras agrícolas do país e investiguei o crime organizado nas fronteiras sul-americanas. Muitas das coisas que vi por este mundão, uma vez ou outra, me tiram o sono. As fotos das vítimas da Kiss estão entre elas. Tenho certeza de que se os desembargadores e os ministros as olhassem e tivessem uma conversa com os familiares das vítimas, o processo andava. Começaria a andar mais rápido. Como diria o meu amigo Tigrinho: “É muita crueldade com os parentes deixar o tempo passar”.