Por ser considerado um assunto tabu, a imprensa não noticia casos de relações de conflito entre enteados, padrastos e madrastas. Até acontecer uma morte como é a do menino Henry Borel, quatro anos, no Rio de Janeiro. O garoto vivia com a mãe, professora Monique Medeiros, e o padrasto, médico e vereador Jairo Souza Santos Júnior, o Dr. Jairinho. No início do mês de março, dia 5, uma segunda-feira, Henry morreu. A versão do casal é que o menino caiu da cama. A autópsia do corpo conta outra história, a de que Henry foi agredido. E na reconstituição da morte a polícia encontrou contradições na versão do casal, que até então era ouvido no inquérito policial na condição de testemunha. Agora, ambos são investigados como suspeitos da autoria de um crime. Na manhã de hoje (08/04), eles foram presos por 30 dias acusados de ameaçar testemunhas.
Por que a imprensa considera as relações conflituosas entre enteados, padrastos e madrastas um tabu? Duvido que algum jornalista saiba. Os tabus nas redações estão ali há muitos anos e ninguém sabe o motivo e nunca se preocupou em descobrir. Mas lembro que sempre que se derruba um tabu na redação a sociedade ganha. Como foi no caso do suicídio. Por muitos anos não se noticiava suicídios porque alguém havia dito que sempre se dava a notícia de um, outras cinco pessoas se suicidavam. Há uma década se começou a noticiar suicídios como um problema de saúde pública e de imediato surgiram programas governamentais de prevenção. É sobre o tabu das relações de conflito entre enteados, padrastos e madrastas que vamos conversar. A pergunta que nós jornalistas precisamos fazer é a seguinte: se detectado a tempo um conflito desses, a vida de uma criança pode ser salva? Sempre que aconteceu um crime do tipo do menino do Rio me lembro das conversas que tive com um delegado da Polícia Civil gaúcha no início dos anos 80, quando eu era um repórter novato. Ele havia rompido o casamento de uma década, pediu transferência para outra cidade e acabou no interior do Rio Grande do Sul, na fronteira com a Argentina. As meninas ficaram sob a guarda da mãe. Sempre que possível, eu desviava o roteiro das viagens que fazia para o jornal para passar na cidade do delegado. Ficávamos até altas horas da noite tomando vinhos argentinos e comendo assado de tiras (churrasco). Em uma dessas conversas, perguntei-lhe como estavam as filhas. Ele me disse que a ex-mulher havia se casado e que a sua preocupação era o “cara” que iria viver na mesma casa com as meninas.
Na época, não dei importância para a preocupação do delegado. Hoje, 40 anos depois, me dei conta que, pela vida afora, ouvi relatos muito semelhantes a respeito de casais separados em relação aos padrastos e madrastas dos seus filhos. Claro que é preciso dar um desconto, porque as figuras do padrasto e da madrasta são demonizadas desde que se inventou a escrita. Inclusive, no interior do Rio Grande do Sul existe o dito popular: “Deus é pai, não padrasto”. Há um fato que não entra na hora de negociação da separação do casal que tem filhos pequenos ou adolescentes: como será a convivência deles com o padrasto ou madrasta. Por quê? Primeiro, porque eles têm a proteção da lei. Depois, porque seria uma intromissão absurda na vida de outra pessoa. O fato é que a preocupação existe. E essa preocupação volta a ser assunto sempre que acontece um caso envolvendo a morte de um enteado. A imprensa só entra na história depois da morte, como se a tragédia tivesse brotado do nada. Mas tragédias não brotam do nada. Antes de acontecerem, elas emitem sinais que nós jornalistas não levamos a sério, porque existe o tabu nas redações de que briga entre enteados, padrastos e madrastas não é notícia, salvo se envolver gente importante. Claro que não são notícias de capa. Mas são sinalizadores de uma situação que pode evoluir para um desfecho trágico. E as redações estão estruturadas para detectar sinais de assuntos que podem virar notícia. Existem nos jornais repórteres que fazem plantão durante 24 horas, ligando para delegacias, bombeiros, hospitais e todos os outros serviços de emergência. É preciso incluir nessa ronda os Conselhos Tutelares, porque é lá que as broncas com crianças aparecem.
E também é necessário incluir entre as perguntas de rotina para os plantonistas das delegacias distritais se “há bronca de marido e mulher”. Por quê? Quando o registro é feito em uma delegacia distrital o plantonista tem por tradição “não levar a sério briga de marido e mulher”. Só quem leva a sério são as delegacias especializadas. Também é importante perguntar ao policial plantonista se houve queixa de desrespeito à “Maria da Penha” – a medida protetiva Maria da Penha é uma determinação judicial que proíbe o agressor de se aproximar da vítima. Outro detalhe importante: perguntar ao plantonista se houve registro de vizinhos sendo incomodados pela gritaria de briga de casal no prédio. Sendo generoso, 90% das informações coletadas pelos plantonistas nas redações vão para a lata de lixo. Nos jornais mais organizados essas informações são transformadas em relatórios para os editores de área, alertando-os sobre possíveis assuntos que podem crescer e virar manchete de capa. As informações que sinalizam para uma futura tragédia estão circulando. Precisamos treinar os plantões das redações para ficarem atentos a elas.
Por exemplo, o caso de Henry: antes de ser suspeito pela morte do menino, o vereador Dr. Jairinho deixou um rastro nas delegacias de queixas de agressão contra mulheres, reclamações de vizinhos de brigas de casal e por aí afora. Pelo que os policiais apuraram até agora, o vereador é uma pessoa com problemas emocionais que teve várias relações com mulheres separadas e com filhos pequenos, que ele agride. Outro caso rumoroso aconteceu em 29 de março de 2008, em São Paulo. A menina Isabella Nardoni, cinco anos, foi agredida pela sua madrasta, Anna Carolina Jatobá, e jogada do sexto andar do prédio com a cumplicidade do seu pai, Alexandre Nardoni. Alexandre foi condenado a 31 anos de prisão e Anna, a 26. Quatro anos depois, em 4 de abril de 2014, na cidade de Três Passos (RS), o menino Bernardo Boldrini, 11 anos, foi morto pela madrasta Graciele Ugulin. Ela e o pai do menino, o médico Leandro Boldrini, foram presos e condenados: ele a 33 anos, e ela a 34 anos de prisão. Toda a cidade sabia que Graciele maltratava o menino. Tanto que o caso já tinha chegado ao Forum e ao Conselho Tutelar. Só a imprensa não sabia. Inclusive eu, que pelo menos duas vezes por ano passava pela cidade em busca de histórias para escrever.
O que mantém os tabus das redações são os colegas que ainda acreditam que se o jornal não der a matéria, o assunto não existe. Isso acabou há muitos anos, e o tiro de misericórdia nesse tipo de atitude foi dado pelas novas tecnologias da comunicação. No caso específico das relações conflituosas entre enteados, padrastos e madrastas, que têm gerado crimes horríveis como os três que citei, o editor tem o direito de não publicar um assunto se achá-lo irrelevante. Mas precisa saber o que está acontecendo. As grandes empresas de jornalismo do Brasil estão contando os centavos. Isso significa que são escassos os recursos em pessoal e estrutura para investir em um assunto. O que torna ainda mais essencial reorganizar o fluxo de informações despejadas dentro dos jornais pelos plantões. Casos como o do Henry, da Isabella e do Bernardo vão continuar surgindo. Antes de terminar a nossa conversa. Lembram das filhas do delegado que citei lá no meio do texto? Elas, o padrasto e a mãe nunca tiveram problemas. O pai delas se aposentou e continua morando no interior.
Meus cumprimentos, Wagner. Uma abordagem original e lúcida sobre uma realidade presente no nosso meio, mas que só emerge, infelizmente, depois do fato consumado. Jornalismo é isso: apontar o problema e mostrar caminhos para uma possível solução.
Muito obrigado, meu jovem. Te cuida
Abraços