De maneira intuitiva, logo que começou a sua carreira política como vereador do Rio de Janeiro e depois como deputado federal por quase três décadas, o presidente da República, Jair Bolsonaro (sem partido), já tinha se dado conta da importância de ser a manchete do jornal. Não interessava se a matéria falasse mal dele da primeira até a última linha. O importante era ter o seu nome lá no título. Há registro em matérias publicadas que certa vez ele “cantou marra” para seus então colegas do baixo clero da Câmara dos Deputados porque tinha sido manchete de página em um jornal estrangeiro, por ter defendido os militares que deram o golpe de 1964. Se nos tempos de deputado federal Bolsonaro dependia da boa vontade de um repórter carente de assunto para obter atenção para suas teses exóticas sobre o cotidiano dos brasileiros, hoje, pelo fato de ser presidente do Brasil, ele não precisa mais correr atrás da atenção dos jornalistas. O cargo que ocupa torna obrigatório para a imprensa publicar o que ele fala. Por mais exótico que seja. Não interessa o conteúdo da matéria. O que interessa é que falem dele.
Essa mesma “saia justa” em que os jornalistas brasileiros estão hoje em relação a Bolsonaro já foi vestida pelos colegas americanos durante o governo do presidente Donald Trump (republicano), que tentou ser reeleito em 2020 e perdeu para Joe Biden (democrata). Li vários trabalhos acadêmicos e comentários de especialistas em comunicação de massa sobre o assunto. A imprensa tradicional dos Estados Unidos não tinha como deixar longe das suas manchetes as coisas exóticas que Trump fazia para continuar no centro das atenções. Afinal, ele era o presidente de um dos países mais poderosos do mundo. Tanto que a popularidade de Trump se manteve alta até a derrota nas urnas. Inclusive resistiu ao desgaste causado pela tentativa de invasão do Capitólio, em janeiro, pelos seus seguidores. A grande pergunta que se faz na imprensa dos Estados Unidos é se a popularidade do ex-presidente americano resistirá ao seu afastamento das manchetes dos jornais. Contribuiu para a derrota de Trump o seu negacionismo em relação ao poder de contágio e letalidade da Covid-19. O que foi usado com extrema competência na campanha pelos democratas. A favor de Trump há o fato de que ele comprou as vacinas e graças a isso hoje os americanos estão se livrando da pandemia.
Simplificando a história. O fato é que os americanos não perdoaram Trump pelas mais de 500 mil mortes causadas durante o seu governo pela Covid-19. Qual a lição que Bolsonaro tirou da derrota de Trump, seu ídolo? O presidente brasileiro mantém o seu discurso negacionista. Defendendo o uso da cloroquina e outras drogas sem efeito contra a Covid e apostando na imunidade de rebanho. Esse discurso foi desmentido várias vezes durante a semana pela Comissão Parlamentar de Inquérito da Covid-19 do Senado, a CPI da Covid, que investiga os motivos pelos quais o combate à pandemia virou uma lambança que vem matando mais de 2 mil pessoas diariamente, num total que até agora já soma 500 mil óbitos de brasileiros. Ele tem se mantido coerente ao seu discurso e isso lhe garante espaços na imprensa. Aqui vou chamar a atenção dos meus jovens colegas que trabalham no dia a dia das redações, especialmente nas emissoras de rádio do interior do Brasil. Nenhum meio de comunicação influencia mais a opinião pública do que os noticiários diários das rádios e TVs abertas. E o espaço que o repórter tem para contextualizar o assunto se resume a uma linha. Como fazer? Não há uma receita. Mas sempre que eu estive em uma “saia justa” desse tipo seguia o conselho que recebi de um velho repórter quando comecei na profissão, em 1979. Ele disse: “Não te afasta do fato”. No caso da CPI da Covid é simples: os senadores estão procurando as digitais dos responsáveis pelas 500 mil mortes no governo. O resto é “fogo de artifício”, como falava um severo editor que conheci nos anos 80. Por exemplo: Bolsonaro continua defendendo o uso da cloroquina como droga capaz de prevenir a Covid. Todo mundo sabe que além de ineficaz a droga tem efeitos colaterais que podem matar. Com isso ele garante espaço nas manchetes dos noticiários. Mas a que custo? Aqui é o seguinte. Pelo foco que dei na minha profissão de repórter – disponível na internet – eu conheço razoavelmente bem o interior do Brasil e as populações que vivem nas favelas nos grandes centros urbanos. E sei que tudo que os noticiários das rádios e TVs abertas publicam passa a circular nas comunidades como fossem verdades. Ainda mais se dito pelo presidente da República. Os senadores da CPI da Covid estão investigando qual é o custo para a saúde pública desse tipo de comportamento do governo.
Se a estratégia de Bolsonaro do “fala bem ou fale mal, mas falem de mim” vai garantir a sua reeleição é um assunto que vamos descobrir logo. Estou aproveitando essa oportunidade para lembrar aos meus colegas o seguinte: é fundamental dar apoio ao jovem que começa na carreira. Ainda mais nos dias de hoje, que o exercício da profissão se tornou uma “máquina de moer talentos” graças à carga de trabalho imensa – várias pautas e obrigação de fazer texto, vídeo e áudio – e aos baixos salários. Apesar disso, as redações continuam sendo a grande escola de lapidação do jornalista recém saído da faculdade. Tenho dito nas minhas palestras que não sou profeta do “apocalipse” da profissão. A nossa lida tem futuro, só que precisamos reorganizar os conteúdos das faculdades e montar o nosso próprio negócio, como fizeram os colegas dos tempos da Ditadura Militar (1964 a 1985), que ergueram a Imprensa Alternativa. Não adianta ficar apontando o dedo na cara dos colegas que fazem os noticiários das rádios e TVs aberta. Temos que ajudá-los colocando à sua disposição conteúdos que mostrem como se livrar da “saia justa”. Muitas vezes se consegue alertar o leitor, ouvinte e telespectador sobre a falsidade da fonte com uma palavra apenas. Já vi acontecer muitas vezes. A pandemia da Covid-19 está influenciando os rumos de profissões em várias áreas. O jornalismo não é exceção. Temos que nos capacitar para contar a história dos 500 mil mortos no Brasil. É uma tarefa complexa.