Em 2014, o jornalismo online viveu o seu auge nos noticiários do sul do Brasil, em especial no Rio Grande do Sul. E por conta dele foi ressuscitada a concorrência entre os noticiários. E foi graças a essa concorrência que se fez um jornalismo relevante para a comunidade. Como, por exemplo, na cobertura do Caso Bernardo, o brutal assassinato do menino Bernardo Uglione Boldrini, na época com 11 anos, em Três Passos, cidade agrícola no Noroeste do Estado, próximo à fronteira com a Argentina. Nesta segunda-feira, sentam-se no banco dos réus para o julgamento no Foro da cidade o pai do menino, o médico Leandro Boldrini, a madrasta Graciela Ugulini, a enfermeira Edelvânia Wirgnovicz e o seu irmão Evandro, estes últimos amigos da família e apontados pela polícia como cúmplices – há um vasto material na internet sobre os detalhes do crime e a participação de cada um deles no episódio.
Esse é o cenário. A minha geração de repórteres foi testemunha do sepultamento da concorrência entre os noticiários e, por consequência, da perda de relevância dos conteúdos dos noticiários para as comunidades. A perda da concorrência aconteceu devido a um fenômeno que se instalou no Brasil nos anos 70. Muitas empresas de comunicação se organizaram em grandes grupos operando nas áreas de rádio, TV e jornais. Não foram nem uma nem duas, mas muitas as ocasiões em que assisti a produtores de noticiários de TV exigir exclusividade do entrevistado para colocá-lo no ar. Muitas vezes a pessoa aguardava uma semana até sua entrevista ir ao ar.
Por estar envolvido na cobertura de conflitos ao longo de toda a minha carreira de repórter, especialmente agrários e de fronteiras, testemunhei muitas dessas histórias. Vou citar duas situações nas quais participei ativamente: a primeira aconteceu na madrugada do dia 27 de janeiro de 2013, em Santa Maria, cidade do interior gaúcho. Um incêndio na Boate Kiss matou 242 pessoas, a maioria jovens universitários, e feriu outras 680, com gravidade. São réus no processo – que ainda tramita na Justiça – quatro pessoas: os donos da boate, Elissandro Spohr, o Kiko, e o Mauro Hoffmann, e os músicos Bonilha Leão e Marcelo Santos.
Ainda saía fumaça dos escombros da boate, os corpos das vítimas estavam sendo retirados do local e os feridos enchiam os hospitais da região quando Kiko se deslocou até Cruz Alta, cidade localizada 140 quilômetros ao norte de Santa Maria. Internado em um hospital, ele deu uma entrevista exclusiva para uma rede de TV que foi ao ar uma semana depois do incêndio.
A segunda situação aconteceu em 2014, no caso Bernardo, em Frederico Westphalen, que fica 80 quilômetros a leste da cidade da vítima, Três Passos. Depois de as investigações andarem em círculos durante quase uma semana, finalmente surgiram imagens da câmera de segurança de um posto de combustíveis em Frederico que colocaram a madrasta Graciela e sua amiga Edelvânia na cena do crime. Durante uma semana, um dos sócios do posto, Jonir Piaia, recebeu propostas de exclusividade das redes de TV para liberar as imagens. Não liberou. Eu estava na fila dos jornalistas que todos os dias compareciam ao posto para tentar convencê-lo a mudar de ideia. Depois de tomar muitas garrafas de água mineral, chimarrão e chá de banco aceitei o convite dele: “Volta aqui quando tudo terminar que eu vou dar uma coletiva e entregar para vocês o filme (vídeo)”.
Sobre o compromisso assumido por Piaia de divulgar o vídeo ao mesmo tempo para todos os veículos de comunicação, eu comentei com um colega de um site de notícias da região: “Tenho lá as minhas dúvidas se ele vai fazer isso mesmo”. O colega respondeu: “Ele é um homem de palavra. Prometeu a mesma coisa para nós”. Piaia cumpriu a palavra.
Comecei a trabalhar como repórter em 1979, e a cobertura do caso Bernardo foi a primeira que fiz exclusivamente para o site da Zero Hora. Na época, devida à concorrência com os sites de outros jornais, rádios e TVs, era preciso atualizar as notícias a cada hora. Isso dava um imenso poder para o repórter. Uma coisa era escrever para um jornal, e só no dia seguinte o leitor tomar conhecimento do assunto. Outra era estar online. Na cobertura de casos como o de Bernardo Boldrini a atualização da matéria foi um instrumento de pressão importante nas mãos do repórter para cobrar resultados das autoridades.
A tarefa da delegada Caroline Bamberg terminou quando os quatro suspeitos se transformaram em réus (eles aguardaram o julgamento presos). Mas a nossa de repórter ainda não, porque há dois casos na região que ainda não foram resolvidos. Na mesma Três Passos do Caso Bernardo, em 13 de julho de 2011, a adolescente Cintia Luana Ribeiro Moraes, 14 anos, grávida de sete meses, marcou um encontro com o pai do seu filho, um agricultor que vive no Paraguai e que estava visitando parentes na região. Nunca mais foi vista, e o caso segue sendo investigado. A 106 quilômetros ao sul de Três Passos, em Palmeiras das Missões, no dia 30 de janeiro de 2018, a contadora Sandra Mara Lovis Trentin, 49 anos, desapareceu e foi encontrada quase um ano depois enterrada em uma cova rasa. Foram acusados e se tornaram réus o marido dela, Paulo Ivan Landfeld, e Ismael Bonetto, 22 anos. Landfeld é vereador pelo PSDB em Boa Vista das Missões, pequena cidade agrícola à beira da BR 386, a 30 quilômetros a leste de Palmeira, onde o casal morava com os filhos. E Bonetto teria sido contratado pelo vereador para matar a contadora. O marido aguarda julgamento em liberdade e Bonetto, preso.
Nesses últimos anos, mudou o foco da cobertura jornalística nos sites. Agora a prioridade é publicar matérias que gerem cliques – audiência –, que nem sempre são relevantes para o leitor. Como isso, a concorrência entre os jornais diminuiu novamente. O que contribuiu para reduzir a pressão dos repórteres sobre as autoridades policiais exigindo a solução dos casos. É simples assim.