Lá no distante ano de 1974, nos primeiros dias de aulas na faculdade de jornalismo, ouvi uma piada de uma colega que resumia o pensamento da época sobre o erro do repórter. Ele me perguntou se eu sabia qual era a diferença entre o erro médico e o erro do jornalista. Perguntei a qual aspecto do erro ele se referia. Respondeu que o erro do médico vai para debaixo da terra, e o nosso erro continua nos ligando. Foi apenas mais uma piada entre as dezenas que circulam entre os calouros, nos primeiros de aula na faculdade, a respeito da profissão que escolheram. Passou-se quase meio século do momento em que ouvi essa piada. E a estou usando para dar o pontapé inicial em uma reflexão que vou fazer com os meus colegas repórteres calejados e com os novatos a respeito do erro do repórter. Primeiro, vamos separar os tipos de erro: aqueles que repetimos diversas vezes, como a gafe – indiscrição involuntária – e a barrigada – jargão da redação que significa publicar o que não aconteceu. Daqueles que servem de lição e que não deveriam ser repetidos mais, tipo Escola Base – escola infantil paulista que, em 1994, teve os seus proprietários e dois funcionários acusados pela imprensa, injustamente, de abuso sexual contra crianças.
Nos dias atuais, os calouros de jornalismo, dificilmente, vão ouvir aquela piada que escutei de um colega sobre a diferença entre o erro do médico e o do jornalista. O que vão ouvir é uma pregação, quase fundamentalista, sobre os danos que qualquer tipo de erro traz à credibilidade do repórter. Também irão tomar conhecimento da evolução, nos últimos anos, dos mecanismos de verificação implantados pelas empresas para evitar os erros. Inclusive com a contratação, pelas redações de grandes empresas de comunicação, de advogados especializados que vasculham as notícias antes de serem publicadas, na busca de deslizes jurídicos. Todos esses cuidados fizeram diminuir sensivelmente a publicação dos chamados erros involuntários: a gafe e a barrigada. Muito embora sejam involuntários, eles causam transtornos e problemas para leitores, ouvintes e telespectadores. Mas não tem como evitar, por exemplo: os erros dos apresentadores de noticiários das rádios e das TVs. A maioria deles é engraçada. E, nos últimos tempos, surgiram até sites que se especializaram no assunto. Cometi um erro involuntário e virei motivo de gracejos entre os meus colegas repórteres e leitores. Estava de plantão e fui fazer uma notícia sobre uma denúncia de que pessoas, antes de viajar em férias, estariam abandonando os seus animais de estimação, principalmente os gatos, no Parque Farroupilha, conhecido como Redenção. Fiz uma notícia gorda – meia página – sobre o assunto. Lá no meio da matéria, escrevi assim: os gatos da redação. Troquei Redenção por redação, e o erro saiu no jornal papel. No mínimo, meia dúzia de pessoas revisou aquele texto, e o erro passou por todo mundo. Isso acontece. Não fui processado. Mas ouço piadas até hoje.
O erro da Escola Base é outra história – há um vasto material disponível na internet. E toda a vez que ele se repete é sinal de que tem alguma coisa errada acontecendo no exercício da nossa profissão. A origem do erro, no caso, foi os repórteres terem acreditado no relatório do delegado encarregado do caso, uma investigação mal feita que apontava os donos da escola e dois funcionários como responsáveis por abuso sexual contra os alunos, crianças de quatro anos. A grande lição que o caso deixou para nós é que a palavra oficial de delegados, juízes, procuradores e ministros dos tribunais não é verdade absoluta até a sentença final. A prova de que não aprendemos a lição aconteceu no mês passado, na Região Metropolitana de Porto Alegre. O delegado Moacir Fermino, na ocasião substituto do seu colega Rogério Baggio, na 2ª Delegacia de Homicídios (2ª DPH) de Novo Hamburgo, em uma investigação contaminada pelo preconceito religioso, apontou sete suspeitos como responsáveis pela morte de duas crianças em ritual satânico. Os sete suspeitos tiveram prisão preventiva decretada, sendo que cinco ficaram presos, e dois, foragidos. O caso teve uma repercussão no Estado, no Brasil e em países vizinhos. Há duas semanas, o delegado Baggio voltou e descobriu que a investigação do seu colega era um amontoado de informações falsas, que foram indicadas por ele em uma entrevista coletiva. Os suspeitos foram soltos. Mas terão uma grande dificuldade de voltar à rotina das vidas que tinham. Negócios, amizades e famílias foram destruídos pela denúncia falsa. De concreto nessa história toda, existem os cadáveres das duas crianças, que são irmãs, e a destruição da investigação sobre esse caso pelas denúncias falsas do delegado Fermino, que está sendo investigado pela Corregedoria da Polícia Civil.
A Escola Base também nos ensinou outra lição: que apenas ouvir o outro lado, geralmente o advogado do suspeito, não nos isenta do erro que se comete de publicar como verdade absoluta a palavra oficial. A Operação Lava Jato é o case do momento. Nós publicamos os vídeos e os áudios dos depoimentos dos delatores e, no final da notícia, o advogado do acusado dizendo meia dúzia de palavras. Mesmo que ele tivesse a sua disposição o mesmo espaço dado na noticia à acusação, ele não teria como fazer a defesa por não ter conhecimento de tudo o que está rolando na investigação. A maneira como estamos cobrindo a Lava Jato tem merecido críticas fortes dos nossos colegas ao redor do mundo, principalmente dos americanos. No futuro, a Lava Jato pode vir a ser o maior cemitério de credibilidade do repórter e fonte de prejuízos milionários com processos judiciais para as empresas.
Os repórteres e os donos das empresas não são ingênuos. E o motivo pelo qual insistem em não aprender as lições da Escola Base pode ser definido em uma palavra: competição. Entre os repórteres, ela é feroz pela notícia exclusiva, o furo. E, entre as empresas, publicar primeiro a notícia é uma questão de sobrevivência no mercado. As autoridades sabem disso e usam contra nós. Dentro dessa ideia, como ficam os injustiçados da Escola Base, os sete suspeitos do caso das crianças sacrificadas na Região Metropolitana e tantos outros casos que foram vítimas do erro jornalístico?