Todos concordam que se não existisse o Sistema Único de Saúde (SUS) seria bem maior e mais violenta a tragédia causada pela pandemia da Covid-19 no Brasil. E também concordamos que os debates entre os candidatos a presidente da República são uma grande oportunidade para cobrar deles os seus planos referentes ao futuro do SUS. Há muitos problemas. É sobre isso vamos conversar, porque considero uma obrigação dos jornalistas colocarem na pauta dos candidatos a solução dos problemas do SUS.
E a fileira de problemas é enorme. Vamos centrar fogo nos maiores e mais urgentes. Comecemos pela carência de médicos que aceitem trabalhar nas favelas dos grandes e médios centros urbanos e nos rincões perdidos pelo interior do país. A dificuldade aqui não é a falta de profissionais. Existem 500 mil médicos no Brasil, sendo que as 353 faculdades de medicina formam anualmente 25 mil novos profissionais. Número suficiente para atender a população. Então, o que acontece? Várias coisas. Em primeiro lugar, nós jornalistas temos que parar de pregar que quem cursa medicina tem obrigação de optar por uma vida franciscana. Como em qualquer outra profissão, os estudantes de medicina fazem o curso pensando em ganhar dinheiro e ficarem ricos. E não conseguiriam isso trabalhando nas favelas ou nos rincões esquecidos do Brasil. Podem dobrar o número de faculdades e inundar o mercado de profissionais que o problema da carência de médicos para as áreas pobres e distantes vai continuar. Então, qual é a saída? O problema é do governo federal. Lembro que a então presidente Dilma Rousseff (PT-MG) implantou, em 2013, o programa Mais Médicos, que trouxe 15 mil profissionais de Cuba para trabalhar nos postos de saúde do SUS. Pouco antes da posse do atual presidente, em 2019, o governo cubano retirou os médicos do Brasil – há matérias sobre o assunto na internet. Bolsonaro implantou o programa Médicos pelo Brasil. Esse programa está patinando pelo singelo motivo da falta de interesse dos profissionais brasileiros. Como resolver o pepino? Quem deve ter essa resposta são os candidatos que disputam a Presidência da República.
Podemos lembrá-los do seguinte. Não se tem o número exato. Mas algumas centenas de brasileiros que fizeram faculdade de medicina no exterior, especialmente nos países da América do Sul, enfrentam grande dificuldade para revalidar os seus diplomas no Brasil. Por que isso acontece? Um dos motivos é que as entidades médicas brasileiras pressionam para dificultar o processo de revalidação dos diplomas. Essa pressão não tem nada a ver com a formação técnica. Tem a ver com a concorrência do mercado. Outra questão que precisa ser resolvida. O Congresso aprovou o uso da telemedicina durante a pandemia. E também determinou a sua organização pós-pandemia. Todos os jornalistas sabem de uma coisa. A telemedicina já deveria ter sido regulamentada muito antes da pandemia. Por que não foi? Em primeiro lugar, ela acaba com a “ambulância terapia”, uma expressão cunhada nas redações para descrever os veículos das prefeituras de cidades pequenas que diariamente percorrem centenas de quilômetros levando pacientes para realizarem exames e consultas com especialistas nos grandes centros. A “ambulância terapia” é uma máquina de fazer votos. Fiz várias matérias sobre o assunto. Se não houver uma disposição séria do governo federal para ampliar e desenvolver a telemedicina no pós-pandemia ela vai começar a patinar, porque contraria interesses políticos e econômicos das entidades médicas.
A incorporação pelo SUS das novas tecnologias de tratamento e medicamentos liberados pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) ainda é um processo muito lento e traz prejuízos para os pacientes e os cofres públicos, já que a maioria deles diminui os custos hospitalares. É possível mudar isso? Lembro os colegas o seguinte. O Brasil é o único país no mundo que tem mais de 200 milhões de habitantes e que conta com um programa de saúde pública da envergadura do SUS. Apesar do presidente Bolsonaro tentar boicotar a vacinação contra a Covid, ela vem acontecendo. Eu já era repórter antes da existência do SUS. E lembro que sempre que uma pessoa caísse doente em uma família pobre era uma pena de morte, porque tudo era pago. Mesmo na classe média o dinheiro para custear um longo tratamento médico exigia a venda de bens. Hoje, muitos brasileiros que migram para os Estados Unidos e países europeus voltam para o Brasil sempre que precisam de tratamentos médicos e hospitalares longos e complexos. Aqui na América do Sul temos mais de 1 milhão de brasileiros vivendo no Paraguai, os chamados brasiguaios, que usam os serviços do SUS nas cidades da fronteira.
Como afirmei no início da nossa conversa. Se não existisse o SUS a tragédia causada pela pandemia que matou mais 600 mil brasileiros teria sido maior. Ainda mais que o presidente Bolsonaro transformou em política de governo a sua crença no negacionismo do poder contágio e letalidade do vírus. Os cientistas têm afirmado que essa pandemia não será a última. Muito pelo contrário. O avanço das cidades sobre o habitat de várias espécies tem o potencial de provocar outras pandemias. Portanto, é necessário avaliar e organizar tudo o que foi aprendido pelos profissionais que trabalham no SUS nos dias atuais para organizar o sistema para a próxima crise sanitária. Há um capítulo interessante lá no relatório de 1,3 mil páginas da Comissão Parlamentar de Inquérito sobre a Covid-19 no Senado, a CPI da Covid, que apura a responsabilidade do presidente Bolsonaro e seus ministros nas 600 mil mortes de brasileiros. O capítulo fala de um grupo de empresários, médicos e outros profissionais que tentaram intermediar a compra de vacinas. Só não conseguiram porque as farmacêuticas tomaram a decisão de só negociar com os governos. Mas tentaram e conseguiram atrasar o processo da compra das vacinas. Pela importância que o SUS tem para os brasileiros, os seus problemas precisam fazer parte dos debates entre os candidatos a presidente da República. É tarefa da imprensa não deixar que isso seja negligenciado.