É parte da rotina do repórter no final de uma cobertura levar na sua bagagem contatos de fontes para acompanhar a evolução do caso. Essa rotina vem de muito longe. Na época que comecei a trabalhar em redação, em 1979, não existia celular e os telefones, que hoje chamamos de fixos, era escassos. Aprendi com um repórter veterano em coberturas daquele tempo que era uma boa ideia anotar o número do telefone de um ponto de táxi. Assim, poderíamos ligar para aquele número e pedir que um taxista fosse avisar uma fonte para que esta fizesse uma ligação a cobrar para a redação do jornal. Foi um aprendizado importante, porque a maioria das minhas reportagens eram sobre conflitos agrários envolvendo agricultores sem-terra, índios, garimpeiros e grandes proprietários de glebas agrárias. Portanto, a maior parte dos meus 30 e poucos anos de redação estive trabalhando em lugares perdidos no mapa. Usei várias vezes os ensinamentos do colega e consegui dar bons furos nos concorrentes. Hoje é tudo mais fácil com a popularização do celular, da internet e dos telefones via satélite. Mas uma coisa não mudou. O repórter ainda precisa fazer as suas fontes nos locais por onde anda, para ter para quem telefonar quando for necessário. Fiz esse nariz de cera para entrar no assunto sobre o qual vamos conversar: o futuro do caso dos brutais assassinatos do jornalista britânico Dom Phillips, 57 anos, e do indigenista brasileiro Bruno Pereira, 41, no início do mês de junho, em um trecho de rio entre a comunidade de São Rafael e o município de Atalaia do Norte, no Vale do Javari, estado do Amazonas.
O caso do assassinato de Dom e de Bruno ainda está muito longe de ter a investigação concluída pela Polícia Federal (PF). Eles foram tocaiados e mortos a tiros disparados a queima-roupa por um bando envolvido com pesca clandestina e tráfico de drogas. Foram responsabilizados pelas mortes os irmãos Oseney da Costa de Oliveira, 41 anos, o Dos Santos, e Amarildo da Costa de Oliveira, o Pelado. Há mais cinco envolvidos, sendo que um deles se entregou para a polícia – há matérias na internet. Há pelos menos três fatores muitos sérios nesse caso. Um deles é que o Primeiro Comando da Capital (PCC), de São Paulo, aliado com outras facções criminosas da região e associado com os cartéis de produtores de cocaína da Colômbia, vem investindo pesado para tornar aquela região um corredor de passagem de drogas para os portos marítimos e aeroportos internacionais do Brasil, para dali abastecer os mercados dos países da Europa e os Estados Unidos. Se essa rota se consolidar não só os povos indígenas da região correm risco de serem extintos. Mas as populações das grandes cidades brasileiras vão conviver com uma violência jamais vista, como é o caso do México, um corredor de drogas para os Estados Unidos. O segundo fator é que, pela primeira vez na história recente do Brasil, o presidente do país, Jair Bolsonaro (PL), é declaradamente a favor dos garimpeiros e madeireiros clandestinos. Como é ano de eleições, os ilegais estão aproveitando para retirar tudo que podem da área, para o caso do presidente não se reeleger. O terceiro fator é que líderes dos países europeus e o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden (democrata), já manifestaram que o país poderá sofrer sanções econômicas caso a devastação da Floresta Amazônica continue.
Manter esse caso nas páginas dos noticiários não deverá ser uma tarefa difícil, porque existe a organização União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja), que praticamente guiou os investigadores da PF na solução desse caso. Mais ainda: foram eles que avisaram, horas depois do fato, o desaparecimento de Dom e Bruno. As informações da Univaja são de boa qualidade, atualizadas e de confiança. Lembram lá na abertura do nariz de cera que falei sobre a dificuldade que se tinha antigamente para saber como as coisas estavam rolando nos locais onde tinha acontecido algum rolo? Mesmo com a tecnologia que se tem hoje, em muitos lugares do Brasil ainda é muito difícil para o repórter saber com exatidão o que está acontecendo, pela falta de uma organização dos envolvidos no acontecimento. Daí a importância de existir a Univaja. E o fato dela existir força o governo a dar a sua versão dos fatos. Logo que ouvi a primeira notícia do assassinato, lembrei-me de uma manhã ensolarada de 1990, sentado no banco de uma praça em Xapuri, uma pequena cidade no meio da Floresta Amazônica, no Acre. Fazia parte de um batalhão de repórteres, editores e produtores de jornais, revistas e redes de TV do mundo inteiro que estava lá para fazer a cobertura do julgamento dos matadores do ecologista, sindicalista e seringueiro Chico Mendes. Ele fora tocaiado e morto em dezembro de 1988 por Darci Alves, a mando do seu pai, Darly Alves, um grileiro de terras.
Estava sentado na praça porque demorei a convencer o jornal que era importante ir lá cobrir o julgamento e quando cheguei não tinha onde ficar. Os dois ou três hotéis da cidade estavam lotados. Moradores alugaram suas casas para jornalistas. Eu havia conseguido um canto para dormir em uma borracharia. Mas eram insuportáveis o calor, os mosquitos e som do motor do compressor de ar. E ainda havia a diferença do fuso horário do Acre, três horas mais cedo em relação a Porto Alegre (RS), com o horário de verão. Isso significava que quando os jornais e noticiários estavam fechando as edições, as coisas ainda estavam acontecendo em Xapuri. Eu estava em um “mato sem cachorro”, um dito popular do interior gaúcho que significa enrascado. Foi quando avistei o jornalista Zuenir Ventura. Foi graças ao trabalho dele que os matadores de Chico Mendes foram presos e depois condenados. Tinha lido tudo que ele tinha publicado sobre o caso no Jornal do Brasil (JB). Para os repórteres, ele era referência no caso. Ele me conseguiu uma vaga no pequeno Hotel Veneza. Zuenir, atualmente com 91 anos, acompanhou o caso Chico Mendes de 1989 até 2003 e escreveu o livro Chico Mendes – Crime e castigo. Os livros e as matérias (publicadas no JB e Globo) do Zuenir são uma aula de como se faz um bom jornalismo. O caso de Dom e Bruno é uma oportunidade que os jovens repórteres têm de se comprometer com a parte mais nobre da nossa profissão, que é não deixar os crimes serem varridos para debaixo do tapete da história.