Processar pais de vítimas da Kiss era mesmo o fim da picada, mas terminou

Uma madrugada que ainda não terminou. Foto: arquivo pessoal

Luiz Roese, repórter*

No dia 27 de janeiro de 2013, em Santa Maria, cidade repleta de universitários que fica bem no meio do Rio Grande do Sul, um incêndio na Boate Kiss causou a morte de 242 pessoas, a grande maioria jovens. Mas essa tragédia não acabou ali. O trabalho da Polícia Civil e de muitos repórteres investigativos mostrou que houve uma série de omissões do poder público que contribuíram para o que aconteceu.

E não era uma casa noturna clandestina ou que ficava na periferia, longe do centro de poder municipal. Ficava bem no centro da cidade, a poucas quadras da sede da prefeitura e mais perto ainda do prédio onde ficava o gabinete do então prefeito da cidade, Cezar Schirmer, atual secretário estadual de Segurança. Pois bem, nada disso adiantou para que a boate recebesse uma fiscalização mais efetiva. A Polícia Civil até fez sua parte. No inquérito, 35 pessoas foram responsabilizadas e 16 foram indiciadas criminalmente. No rol, entraram prefeito, secretários municipais e bombeiros. Mas grande parte acabou livre depois de qualquer acusação, por entendimento do Ministério Público.

Posteriormente, descobriu-se que o Ministério Público havia firmado um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) com sócios da casa noturna por causa da poluição sonora. Então, alguém do MP esteve lá na Kiss antes da tragédia. Ninguém viu que aquilo era um ratoeira, com uma portinha de saída minúscula?

Por conta das críticas, quatro pais de vítimas foram processados, três deles por promotores de Justiça e um por um ex-promotor. O Ministério Público, depois, deu de Madalena arrependida e pediu a absolvição dos pais.

No dia 10 de junho. o juiz Leandro Augusto Sassi, da 4ª Vara Criminal de Santa Maria, decidiu rejeitar a denúncia contra os pais de vítimas da tragédia da Boate Kiss Sergio da Silva, presidente da Associação de Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria (AVTSM), e Flávio José da Silva, vice-presidente da AVTSM. Com a decisão, não restaram mais ações judiciais contra pais, pois essa era a última em tramitação.

No processo que restava, Flávio José da Silva e Sergio da Silva foram acusados de calúnia pelo promotor Ricardo Lozza. Sergio foi defendido pelos advogados Ricardo Munarski Jobim e Luiz Fernando Scherer Smaniotto. Flávio foi defendido pelo advogado Pedro Barcellos Jr., também advogado da AVTSM.

Flávio, requereu a chamada “exceção da verdade”. Ele tentava provar que não caluniou o promotor e que falou a verdade, ao dizer que o Ministério Público sabia que a Boate Kiss funcionava em situação irregular. No julgamento da “exceção da verdade”, o placar final, no Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJ/RS) foi de 20 votos a 2 contra o pai. O advogado Pedro Barcellos Jr. apresentou um recurso ao Supremo Tribunal Federal (STF), em Brasília. Porém, o agravo em recurso extraordinário da exceção da verdade de não foi analisado pelo STF, pois o ministro Luiz Fux negou dar andamento . Por isso, o processo voltou para Santa Maria, para o juiz Leandro Sassi.

Flávio é pai de Andrielle, que morreu na tragédia aos 22 anos. Sérgio da Silva é pai de Augusto, estudante de direito que perdeu a vida no incêndio aos 20 anos.

Houve outros processos contra pais de vítimas. Em julho de 2017, foi divulgada a sentença que absolveu o pai de vítima Paulo Carvalho. Ele respondia por calúnia e difamação por causa de manifestações em seu Facebook, em ação criminal ingressada pelos promotores Joel Dutra e Maurício Trevisan. Nesse processo, ele foi defendido pelo advogado Pedro Barcellos Jr. Paulo Carvalho é pai de Rafael Paulo Nunes de Carvalho, que morreu aos 32 anos na tragédia da Kiss.

Também foi processada Irá Mourão Beuren, a Marta, mãe de Silvio Beuren Junior, o Silvinho, que morreu na tragédia da Boate Kiss aos 31 anos. Ela foi inocentada no processo cível que sofria por injúria, difamação e falsidade ideológica. Marta foi processada pelo promotor aposentado João Marcos Adede y Castro e pelo filho dele, o advogado Ricardo Luís Schultz Adede y Castro. O processo foi instaurado devido a um artigo publicado no jornal Diário de Santa Maria, de autoria de Irá. A ré foi defendida pela advogada Patrícia Michelon.

Agora acabaram essas tentativas de intimidação dos pais. E ainda busca-se justiça. No momento, os quatro principais acusados, dois sócios da boate e dois integrantes da banda Gurizada Famdangueira, não irão a júri popular porque assim o TJ/RS decidiu. Ainda haverá recurso contra essa decisão.

A luta dos familiares continua. Ainda há uma tentativa de federalizar o processo. E há uma petição à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA) que solicita o reconhecimento da responsabilidade do Estado brasileiro pela tragédia da Kiss. E não venham querer calar a boca de pais que já perderam o que tinham de mais importante na vida.

  • Na madrugada, pelas três horas e pouco, do dia 27 de janeiro de 2013 o repórter Roese estava na frente da Kiss descrevendo para os leitores o horror da tragédia que vitimou 242 pesssoa, a maioria jovens, e feriu outros 680. Para mim, e outros colegas repórteres, a Kiss foi um episódio que marcou. Para o Roese foi muito mais. Ele continua acompanhando o dia a dia das famílias que perderam seus filhos. Ele é hoje o maior especialista no Brasil sobre o caso Kiss. Publicando o texto dele, eu  faço uma humilde homenagem a um colega que sempre esteve do lado  do seu leitor.

 

 

 

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