Há um conta que a imprensa do Brasil não fez e precisa fazer para facilitar a vida dos pesquisadores e historiadores que vão documentar a pandemia causada pela Covid-19. Em 15 de dezembro do ano passado, um mês depois que a Ômicron, a variante mais contagiosa até agora conhecida da Covid, iniciava o seu alucinante galope pelo mundo saindo da África do Sul, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) liberava para uso nas crianças de cinco a 11 anos a vacina da Pfizer. Enquanto os pais recebiam a liberação soltando foguetes, o presidente da República, Jair Bolsonaro (PL), ameaçou, em uma de suas lives, tornar público os nomes dos funcionários da agência que haviam liberado o imunizante. E o seu ministro da Saúde, o médico Marcelo Queiroga, espalhava “miguelitos” pelo chão para atrasar o início da vacinação. Sendo que vários países, como Estados Unidos, Chile e outros, já tinham vacinado centenas de crianças. As crianças de cinco a 11 anos brasileiras só começaram a serem vacinadas, a conta-gotas, em 15 e janeiro de 2022. Pelo contrato que governo federal tem com a Pfizer, os imunizantes poderiam ter chegado ao Brasil dias depois da liberação pela agência. Na quinta-feira (20/01), a Anvisa aprovou a uso emergencial da vacina CoronaVac para crianças e adolescentes de seis a 17 anos. O imunizante é fabricado em uma parceria entre o Instituto Butantan, de São Paulo, e a farmacêutica chinesa Sinovac.
Tudo indica que a vacinação das crianças vai deslanchar, graças à pressão das entidades médicas, da imprensa e da comunidade organizada. Mas Bolsonaro e Queiroga ainda não desistiram de tentar atrapalhar. Sou um velho repórter estradeiro e entendo que a estratégia política de Bolsonaro é desafiar a ciência para se manter nas manchetes dos jornais. Tratei disso no meu post de 24/12/2021 “Até onde Bolsonaro vai esticar a corda no caso das vacinas das crianças?”e. O efeito colateral dessa estratégia é a crueldade com as famílias que contam os dias e as horas para ver seus filhos imunizados. Dispersos pelos noticiários existem números de óbitos e internações de crianças nos hospitais devido a Covid. Tenho lido, ouvido e visto tudo que se publicou sobre o assunto. Pode ter escapado alguma coisa. Mas por tudo que tenho tomado conhecimento ainda não se publicou uma matéria determinando o atraso da vacinação das crianças causado pela embromação do governo e qual foi o seu custo em vidas e sofrimento para as famílias.
Não é um resultado fácil de se chegar. Lembro que a Comissão Parlamentar de Inquérito da Covid-19 do Senado, a CPI da Covid, levou vários meses para apurar os números exatos do tamanho da tragédia causada pelo negativismo de Bolsonaro em relação ao poder de contágio e letalidade do vírus. A questão do atraso na vacinação das crianças é mais complicada porque além de envolver números há o sofrimento das famílias. Mas precisa ser feito porque são informações necessárias para quem vai contar a história da pandemia no mundo. Lembro que o Brasil, por ter sido até agora o único país no mundo que realizou uma CPI da Covid, vai ter um capítulo especial nessa história. A Ômicron está contaminando diariamente, em média, 180 mil pessoas no Brasil. Ainda não foi publicado o número de crianças contaminadas diariamente. Não tem como levantar essa informação na correria do dia a dia das redações. Mas a informação existe e precisa ser garimpada. Trabalhei mais de três décadas em redação e sei como o cobertor é curto, um modo de dizer que existe pouca gente para muito trabalho. Mas hoje, felizmente, existem muitas agências de notícias e pequenas empresas de conteúdos pelos quatro cantos do Brasil. Esse pessoal pode ajudar a levantar os números exatos das crianças contaminadas diariamente pelo vírus.
Um dos efeitos colaterais de toda essa lambança que o presidente da República e o seu ministro da Saúde é colocar dúvidas nas cabeças dos pais sobre a eficiência dos diversos tipos de vacinas que as crianças recebem desde os primeiros meses de vida. Lembro que muitos recursos públicos e trabalho duro dos profissionais da área de saúde foram investidos para organização do calendário de vacinas infantis no Brasil. Graças a isso, muitas doenças, como a paralisia infantil, praticamente desapareceram. Daí a importância de imprensa estar atenta para esclarecer o seu leitor sobre a verdade. Aqui lembro o seguinte. A maior influência na opinião não é dos comentaristas políticos dos noticiários. É do repórter que faz a cobertura do dia a dia. Justamente um dos elos mais frágeis das redações nos dias atuais devido à sobrecarga de trabalho e os baixos salários que recebem. Portanto, o que se conseguir produzir de boas informações que possam ser usadas por esses profissionais para robustecer o seu trabalho será bem-vindo. Há fato que nós jornalistas precisamos olhar com muita calma, que é a fidelidade de Bolsonaro e dos seus seguidores à defesa dos movimentos antivacina, negação da ciência e pregação do uso de drogas sem efeito contra a Covid, como é o caso da cloroquina. O que significa essa fidelidade a essas ideias? Convicção? Não creio. Pelas informações de que dispomos trata-se de uma estratégia de marketing político. Não podemos esquecer que há três décadas Bolsonaro consegue se reeleger e eleger os seus filhos apostando no absurdo, como a defesa dos torturadores dos presos políticos do regime militar que governou o país de 1964 a 1985. Por que mudaria agora? Só porque existe um vírus que já matou mais de 600 mil brasileiros?