Ao acusar o ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF), de ofender o Exército ao falar que a presença de militares no Ministério da Saúde os associa a um genocídio, o vice-presidente da República, Hamilton Mourão, está dando um tiro no mensageiro. Ele sabe que não foi Mendes que nomeou o general da ativa Eduardo Pazuello como ministro interino da Saúde, em plena crise sanitária causada pelo coronavírus. Foi o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) que escolheu o general para o lugar do então ministro, o oncologista Nelson Teich, que se demitiu do cargo que assumira em substituição ao médico Luiz Henrique Mandetta, demitido pelo presidente. Esse entra e sai de ministros, somado a dois outros fatores – a falta de competência dos militares na administração da saúde e os discursos e ações negacionistas do presidente sobre o vírus que já matou mais de 70 mil brasileiros e centenas de milhares ao redor do planeta – levou as autoridades sanitárias mundiais a descrever as ações do governo na questão do vírus como genocida. O Brasil é o segundo país em número de mortes pelo coronavírus.
Antes de seguir contando a história. Esse assunto vem ocupando os espaços dos noticiários desde sábado, quando o ministro fez a declaração em uma conversa com a revista Istoé. Na terça-feira (14/07), eu recebi um WhatsApp de um jovem que conheci em uma palestra que fiz em curso de jornalismo do interior do Brasil. Ele me pediu para “trocar em miúdos” – facilitar o entendimento – o que está acontecendo. Voltando à história. O vice-presidente é general da reserva, pessoa esclarecida. Não costuma dar tiro em mensageiro. Então por que ele e os comandantes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica estão disparando fogo pesado contra o ministro Gilmar Mendes, que inclusive já havia falado sobre a questão do genocídio em abril, na ocasião da demissão do Mandetta? As Forças Armadas do Brasil, apoiadas pelos Estados Unidos, derrubaram o então presidente da República João Goulart, o Jango, em 1964, e até 1985, quando o país se redemocratizou, os militares se envolveram em torturas de presos políticos, mortes, censura feroz à imprensa e outras arbitrariedades. Levaram três décadas para limpar o nome. Com o passado de arbitrariedades que possuem, se houver a acusação de genocida no caso do coronavírus nos tribunais internacionais, ela cola na imagem dos militares como um chiclete. Esse é o xis da questão.
Bolsonaro é capitão da reserva do Exército e Mourão, general. Até aí, tudo bem. Estão no seu direito de votar e serem votados, como garante a Constituição de 1988. Logo que o presidente assumiu, transformou o seu governo em uma agência de empregos para militares da reserva e da ativa das Forças Armadas e das policias militares. Hoje somam quase 3 mil. Logo, a presença no governo de generais e outros militares começou a ganhar as manchetes dos jornais. Muitos falaram, inclusive Mourão, que o destino do governo seria debitado na conta das Forças Armadas. Oficialmente elas não estão no governo. Mas no imaginário popular estão. Aqui é o seguinte. Se o governo Bolsonaro fracassar por uma questão econômica ou política, faz parte do jogo. Mas o que acontece é que o presidente se envolveu em atos considerados ilegais, como acompanhar apoiadores que pediram o fechamento da Câmara dos Deputados, do Senado e do STF. E defender torturadores do período militar, como o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra (falecido em 2015). Soma-se a isso a existência de uma máquina de fabricação de fake news operada pelo Gabinete do Ódio, como ficou conhecido o círculo íntimo de pessoas que cercam o presidente. Lembro o seguinte: falhar por incompetência é do jogo. Cometer atos contra a lei é crime. Os militares que foram para o governo, incluindo o vice Mourão, sabiam quem era Bolsonaro – há várias matérias na internet. Mas apostaram que podiam controlá-lo. Não conseguiram. Perderam para a soma de forças políticas que dão sustentação ao governo, que é formada por nazistas, terraplanistas, ocultistas, neoliberais, saudosistas do golpe de 64 e oportunistas de todos os calibres.
A soma disso tudo é que Mourão está com um belo pepino nas mãos, que pode comprometer a carreira política dele. É uma situação complexa, que exige do repórter conhecimento para não escrever bobagem. Lembro que a maioria dos colegas das redações do Brasil são jovens ou de meia-idade. Portanto, começaram a trabalhar em uma época que os principais assuntos que fazem parte da pauta diária dos jornais, rádios, TVs, sites e outras plataformas estão ligados a meio ambiente, violência urbana, globalização da economia, novas tecnologias e por aí afora. A presença dos militares do governo e o que isso significa é uma novidade e um assunto muito complicado para ser entendido pelo repórter que está na correria do dia a dia. Esse assunto foi ressuscitado por Bolsonaro. Lembro que antes do presidente se eleger, nas mesas dos botecos quando eu e outros velhos repórteres colocávamos na conversa assuntos ligados ao período em que o país foi governado pelos militares (1964 a 1985), ou se trocava de assunto ou se ficava falando sozinho. Aprendi na lida de repórter que quanto mais conhecimento se tem sobre um tema, mais fácil fica contextualizar a notícia. A contextualização valoriza a notícia e ajuda o leitor a entender a situação. Resumindo toda a nossa conversa. Mourão e os comandantes das Forças Armadas sabem que a palavra genocida cola nos militares brasileiros com facilidade devido ao Golpe de 1964. É por aí, podem anotar.