Por sua natureza, o gaúcho e seus descendentes espalhados pelas fronteiras agrícolas do Brasil e de países vizinhos são um povo dividido e radicalizado na política, no esporte e na cultura. Poucos assuntos os unem. Um deles é o chimarrão, também chamado de mate ou amargo. Pelo respeito que se tem pelo mate é difícil acreditar que exista alguém que tenha coragem de adulterar a erva-mate. Mas existe. Descobri isso no início dos anos 90, lembro-me bem como foi. Na metade da década de 80 eu engatinhava na reportagem investigativa e sempre ficava contente quando um jornalista experiente me atirava uma “batata quente”, porque era uma oportunidade de mostrar o meu trabalho. Um dia, depois do tumulto do fechamento da redação, estava conversando abobrinhas com um editor quando o Danilo Ucha, um jornalista veterano especializado em arte, cultura, economia e autor de vários livros, me perguntou se eu queria me incomodar. A resposta foi um sonoro “claro que quero”. Ele explicou: “Tem gente adulterando a erva-mate. Aqui tem uma lista de nomes”. A lista estava escrita a caneta em uma lauda. Ucha nasceu em Santana do Livramento, na fronteira com o Uruguai, lá se toma mate com erva forte. Faleceu em 2016 e sempre que cruzava com ele em alguma cobertura jornalística a gente falava sobre a pauta da erva-mate.
Antes de continuar contando a história uma explicação para quem não é jornalista veterano ou não é do ramo. Chamávamos de lauda a folha de papel em que redigíamos a matéria na máquina de escrever. O que diferenciava a lauda de uma folha de papel comum era a marcação do número de linhas e de caracteres por linha, o que dava uma medida aproximada do tamanho que o texto ocuparia na página do jornal. Continuando a história. Viajei durante duas semanas fazendo a pauta do Ucha. Descobri que estavam colocando açúcar durante o processo de moagem da erva-mate. Acontecia o seguinte. As ervateiras compravam as folhas da erva-mate de produtores argentino, que são mais amargas do que as folhas brasileiras. E adicionavam açúcar para suavizá-las. Sem informar ao consumidor, o que colocava em risco a saúde dos diabéticos. E também afetando a qualidade do chimarrão. Outra prática ilegal e muito perigosa para a saúde era moer folhas de outras plantas junto com as de erva-mate para aumentar o volume. Sem bem lembro, na época fiz uma reportagem de duas páginas no jornal denunciando uma série de irregularidades. A matéria provocou um alarido entre os leitores porque ninguém imaginava que existissem pessoas com coragem de fraudar o chimarrão, uma instituição dos gaúchos. Depois da reportagem foram feitas várias leis para controlar a qualidade da erva-mate, uma delas obrigando as ervateiras a informar na embalagem sobre a adição de açúcar ao produto. Anos depois (1996, 2011 e 2019), andei pelas fronteiras agrícolas povoadas pelos gaúchos e seus descendentes e fui lembrado por vários agricultores da reportagem sobre a erva-mate. Uma explicação para os jovens repórteres. As regiões ainda desabitadas do Centro-Oeste do Brasil eram chamadas de fronteiras agrícolas. Empresas de colonização e o governo federal, através do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), povoaram essas regiões com agricultores de todos os estados brasileiros. O maior número foi de gaúchos e seus descendentes, que já haviam povoado o oeste de Santa Catarina e do Paraná. A série de reportagens que fiz foi chamada de Brasil de Bombachas e posteriormente transformada em livros. Fim da explicação. Voltando à nossa conversa.
Não só por ser um consumidor de chimarrão, mas também levado pela curiosidade da minha profissão de repórter, sempre estou atento à qualidade da erva-mate. Por serem vários os fatores que influenciam na qualidade do produto, o sabor de uma mesma marca de erva é diferente de pacote para pacote. Há também uma grande diferença de sabor entre a erva nativa, aquela que nasce naturalmente no meio do mato, e a cultivada, que também é conhecida como “da roça”, por ser plantada. Agora, essas variações de sabor provocadas pelo clima, origem da folha e até a maneira como é armazenada não têm nada a ver com os danos causados ao produto por sacanagem do ervateiro. É justamente aqui que a imprensa precisa entrar em campo e fiscalizar. E também os ervateiros que trabalham de maneira séria precisam ficar atentos à infiltração de safados no ramo e denunciá-los. Lembro que durante muito tempo recebia ligações de empresários do ramo me alertando sobre picaretagens. Entendo por que a erva-mate é um assunto de pé de página na imprensa nacional. O principal motivo é que o consumo se restringe aos gaúchos e seus descendentes. Atualmente são produzidas 900 mil toneladas anuais. Mas não entendo porque a imprensa do Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná, Mato Grosso do Sul e Mato Grosso não se interessam pelo assunto, já que a maioria dos habitantes desses estados é consumidor do chimarrão e do tereré (mate gelado).
A imprensa desses estados deveria prestar mais atenção nos assuntos de interesse dos seus leitores. Lembro os colegas que um dos ensinamentos que se aprende na lida de repórter é que qualquer tipo de alimento ou bebida merece atenção pelo seu elevado potencial de causar danos à saúde em caso de adulteração ou contaminação. Nos dias atuais a questão dos alimentos e bebidas é tratada pela imprensa com o foco na maneira como são consumidos e os benefícios que trazem para a saúde. Conheço o Brasil de norte a sul e de leste a oeste. Existe muita sacanagem no setor de alimentos, como carne clandestina. A falta de jornalistas especializados nesse ramo nas redações é um fato. Tenho defendido nas conversas que tenho com alunos dos cursos de jornalismo que a nossa profissão exige que a gente conheça um pouco de cada assunto. E que seja especializado em dois ou três. A questão da sanidade dos alimentos é um setor carente de jornalistas especializados. Fica a dica para os futuros colegas.
Conhece o podcast Prato Cheio, do projeto O Joio e o Trigo? Vai nessa direção e é muito bom. Tem os áudios no YouTube também e reportagens num belo site.
Não conheço. Vou dar uma olhada. Nunca teve tanto picareta no setor de erva como nos dias atuais.