Por onde anda e o que está fazendo o pastor Silas Malafaia, 65 anos, da Igreja Assembleia de Deus Vitória em Cristo ? Lembrei-me deste polêmico personagem da política brasileira nos minutos seguintes ao presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, 54 anos (PP-AL), ter concluído a votação simbólica (aquela em que não há registro individual dos votos, ou seja, o parlamentar não deixa as digitais do seu voto) do regime de urgência do Projeto de Lei 1904/24, que torna crime de homicídio o aborto após a 22ª semana de gestação, incluindo a gravidez por estupro de menor. O regime de urgência permite que um projeto seja votado a qualquer momento no plenário, sem ter que passar pelas comissões da Câmara. Traduzindo a situação em bom português: é uma espada pendurada acima da cabeça do direito de aborto nos casos de estupro. O projeto foi apresentado pelo deputado Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), 49 anos, pastor da Igreja Assembleia de Deus. Além dele, outros 32 parlamentares de oito partidos, sendo 12 mulheres, assinaram o PL 1904/24. Entre eles estão os deputados Eduardo Bolsonaro (PL-SP), Carla Zambelli (PL-SP) e Nikolas Ferreira (PL-MG).
A respeito do assunto disse o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) que o projeto é uma “insanidade”. Citei Lula porque o deputado Cavalcante afirmou que objetivo do PL era saber a verdadeira posição do presidente da República sobre o aborto. Se o deputado só queria colocar o presidente em uma “saia justa”, ele exagerou. Porque o rolo que o projeto causou foi enorme, incluindo manifestações públicas. Gerou 3,1 milhões de visualizações e 780 mil interações em dois dias. Estes números colocaram o assunto nas manchetes dos jornais e noticiários e empurraram outros temas para o rodapé das páginas. Não vou falar sobre a imensidão do rolo, por considerá-lo pauta da cobertura diária da imprensa. Vou falar sobre os bastidores dessa história. No começo da nossa conversa citei, em uma pergunta, o pastor Malafaia. Por quê? Por entender que os deputados que assinaram o PL 1904/24 são a parte visível da história. E a parte invisível reúne um contingente de pessoas que incluem Malafaia. O PL 1904/24 faz parte da plataforma política do ex-presidente da República Jair Bolsonaro (PL). E toda essa confusão que está gerando alimenta o prestígio político de Bolsonaro, que é a viga central de sustentação do bolsonarismo, um movimento que reúne vários grupos políticos, incluindo a extrema direita. O objetivo deles, a curto prazo, é eleger o maior número possível de prefeitos e vereadores nas eleições municipais deste ano. E, a médio prazo, enfiar goela abaixo do Congresso um projeto de anistia para as 1,5 mil pessoas que foram presas, respondem a processos e estão sendo investigadas pela tentativa de golpe de estado em 8 de janeiro de 2023, quando quebraram tudo que encontraram pela frente no Congresso, no Palácio do Planalto e no Supremo Tribunal Federal (STF), na Praça dos Três Poderes, em Brasília (DF). Se conseguirem a anistia, eles derrubam a sentença do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) de inelegibilidade de oito anos contra o ex-presidente.
Antes de seguir com a história vou dar uma explicação que considero necessária para o leitor e os meus colegas repórteres. Todas essas informações não brotaram da minha cabeça. Cruzei dados que publicamos com conversas que tive com fontes em Brasília e outros cantos do Brasil. Voltando à conversa sobre o lado invisível da história do PL do aborto. Malafaia sempre esteve ao lado de Bolsonaro durante o seu mandato de presidente da República, entre 2019 e 2022. Logo depois que o ex-presidente perdeu a reeleição para Lula, o pastor afastou-se de Bolsonaro. Mas não ficou longe. No começo de 2024, ele voltou e se apresentou para o ex-presidente como salvador da pátria. Na época, Bolsonaro enfrentava um acelerado processo de drenagem do seu prestígio político devido a vários motivos, entre eles as dezenas de processos que responde na Justiça. O pastor organizou e financiou dois grandes eventos políticos para Bolsonaro, que somados reuniram 400 mil pessoas: em fevereiro, na Avenida Paulista, em São Paulo (SP), e em abril, em Copacabana, no Rio de Janeiro (RJ). Ele convenceu o ex-presidente a reagir e partir para o ataque contra o governo de Lula. Lembro que o deputado que apresentou o PL 1904/24, Cavalcante, é conhecido entre os seus colegas da Câmara com “poste” do pastor Malafaia, uma expressão usada pelos parlamentares que significa que a pessoa é manipulada por outra. Nas suas redes sociais, o pastor está acusando o governo Lula, a imprensa e a esquerda de terem distorcido as palavras do deputado – há material na internet.
Arrematando a nossa história. Podem ser muitos os motivos pelos quais Malafaia permaneceu nas sobras na elaboração da PL do aborto. Cabe aos colegas jornalistas correrem atrás para descobrir quem são os personagens que estão articulando a colocação das pautas de costumes na agenda dos deputados e senadores. O destino destas pautas, como a do aborto, pode ser a cesta de lixo da história. Mas o que interessa é que, no momento em que entram na agenda de votação, elas causam um tumulto enorme e ocupam as partes nobres dos noticiários, nutrindo o bolsonarismo. Não tem como a imprensa não as colocar nas manchetes. Uma das maneiras de nós repórteres não ficarmos reféns dessa situação é investigar o lado invisível dessas histórias. É ali, nas sombras, que sempre se encontra personagens interessantes.