Errar, todos os repórteres erram. Admitir o erro faz parte da nossa vida. Mas escrever bobagens é uma outra história, porque é algo que pode ser evitado. Aprendi essa lição nos meus primeiros anos na redação de um jornal. Fiz essa lembrança para falar sobre um hábito que incorporei ao meu dia a dia de trabalho sempre que estive envolvido na cobertura de crimes complicados. O hábito que adquiri é pegar tudo que publicamos sobre o caso na primeira semana e sentar-me com um técnico de um departamento de perícia policial. E conversar sobre a cena do crime que descrevemos para os leitores. Na segunda-feira (18/09), falei com um perito em cena de crime sobre os disparos de fuzil feitos pela Polícia Rodoviária Federal (PRF) que mataram Heloísa dos Santos Silva, três anos, na noite do último dia 7 de setembro. Na ocasião, Willian Silva, acompanhado da mulher, Alana, da filha Heloísa e da tia da menina, dirigia o Peugeot 207 Passion, um carro popular, placas LSH3B59, em Itaguaí, município de 130 mil habitantes na Região Metropolitana do Rio de Janeiro (RJ).
Uma viatura da PRF, tripulada por três agentes, entre eles Fabiano Menacho Ferreira, identificaram pela placa que o veículo dirigido por Willian era roubado. Os policiais relataram ter ouvido um disparo vindo do Peugeot e responderam ao suposto tiro. Menacho fez três disparos. Um deles atingiu as costas e a cabeça da Heloísa, que agonizou durante nove dias e morreu no sábado (16/9), no Hospital Pereira Nunes, em Duque de Caxias, Região Metropolitana do Rio. O perito com quem conversei é uma fonte antiga que tenho. É uma pessoa muito detalhista, que trabalhou muitos anos na perícia policial, e explica as coisas de uma maneira que lembra um professor. Perguntei a sua opinião sobre as informações que publicamos sobre o caso. Disse o seguinte: “Nas fotos publicadas, o carro atingido pelos tiros têm uma película escura nos vidros traseiros e das janelas. O que dificulta uma boa visão para identificar quem está dentro do veículo. Mesmo assim, o policial realizou os disparos sem saber, por exemplo, se havia um refém dentro do carro. Cometeu uma imprudência”. A pergunta seguinte que fiz foi sobre a explicação dada pelo pai da menina, de que havia comprado o veículo de um amigo sem saber que era roubado. Respondeu: “Há uma boa chance de ter acontecido algo semelhante. Ele é gerente de farmácia, função que exige uma certa qualificação. Como é que uma pessoa dessas sai por aí com um carro roubado sem trocar as placas e com a família dentro? Sabendo que as cidades têm cercas eletrônicas que identificam as placas dos veículos furtados, roubados ou com o pagamento de impostos atrasados. Portanto, é grande a possibilidade de ser abordado pela polícia, ainda mais na Região Metropolitana do Rio de Janeiro.” Confesso que não tinha prestado atenção à película escura nos vidros do carro da vítima. Um fato que não passou despercebido aos olhos experimentados na busca de detalhes da minha fonte. A vida do repórter é facilitada quando ele conversa com pessoas que entendem do assunto. Evita que escreva bobagens, principalmente as ditas por pessoas interessadas em desviar a atenção da investigação.
Além dos detalhes da cena do crime que o perito chamou a atenção, o que mais me intriga nessa história são as denúncias feitas pela tia da menina. Ela disse que 28 policiais da PRF, alguns à paisana, estiveram no hospital pressionando a família. Claro, a corregedoria da polícia e o inquérito da Polícia Civil vão esclarecer essa história. Com base nas informações que temos publicado, aparentemente os policiais se deram conta da gravidade da situação e estão tentando mudar a cena do crime. Logo saberemos o que houve. O fato é o seguinte: Heloísa foi morta por um tiro disparado por um agente da PRF contra um carro que não permitia ver com nitidez quem estava no seu interior. Esse fato, somado a outro acontecido em 25 de maio de 2022, no trecho da BR-101 de Umbaúba, Sergipe, quando Genivaldo de Jesus Santos, 38 anos, foi sufocado e morto na “câmara de gás” em que foi transformada uma viatura da PRF, apontam em uma única direção: esses crimes nasceram na academia de formação dos policiais, onde os professores têm misturado ensinamentos técnicos com pregações políticas de extrema direita, especialmente nas polícias militares do Brasil. Essas pregações facilitaram o avanço do bolsonarismo nas fileiras das polícias – há matéria na internet. Trocando em miúdos, o ex-presidente da República Jair Bolsonaro (PL) teve o seu trabalho de pregação das teses de extrema direita facilitado nas academias policiais. Enquanto nós jornalistas não colocarmos debaixo de uma lupa as academias de formação de policiais (civis, militares, PRF e Polícia Federal) vamos ficar enxugando gelo, publicando os erros cometidos pelos agentes, que geralmente acabam em mortes ou em situações como as que envolveram o ex-reitor da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) Luiz Carlos Cancellier de Olivo, que se suicidou após ter sido vítima de uma investigação crivada de erros, na Operação Ouvidos Moucos, da PF – há matérias na internet.
A respeito do treinamento dos agentes das polícias ostensivas, estive conversando com um colega que é especializado no assunto que conheci quando cobri, na década de 90, a guerra civil de Angola, na África. Ele disse que as polícias ostensivas no Brasil são treinadas para agir como se estivessem dentro de um território inimigo. Chegam atirando sem maiores preocupações com os civis que estão na área. Não se preocupam em realizar um trabalho de inteligência para levantar a situação. A menina Heloísa vai ser mais uma estatística se a imprensa não vasculhar e informar ao seu leitor o nome de quem treinou o dono do dedo que apertou o gatilho que disparou a bala que a matou.