Nos tempos que comecei a minha caminhada como repórter, em 1979, era tradição nas redações dos jornais que a iniciação do “foca” se desse pelos plantões. Não sei como é hoje. Mas no início dos anos 80 os plantões eram uma correria, principalmente quando havia uma ocorrência policial. Além de ser visto com desconfiança pelos colegas veteranos, o repórter novato ainda tinha que suportar a gozação dos policiais nas delegacias. Foi em um desses plantões que ouvi pela primeira vez a frase “querem botar na minha conta”. Foi dita por um jovem que havia sido preso e estava depondo. Ele a usou para explicar que o estavam acusando de um crime que não teria cometido. Não sei se a frase se originou nos plantões policiais. Mas foi de lá que ela migrou para as redações. Não tenho os números porque não corri atrás para descobrir. Mas tenho observado que desde que assumiu o seu mandato, em 2019, sempre que dá um rolo o presidente Jair Bolsonaro (PL) usa essa frase nas entrevistas ou nas suas lives.
Ele a usou na sexta-feira (02/09). Ao ser entrevistado sobre o atentado sofrido pela vice-presidente argentina Cristina Kirchner, no meio do seu depoimento proferiu um “querem botar na minha conta”. A entrevista aconteceu na 45º Expointer, uma tradicional feira agropecuária realizada anualmente em Esteio, cidade da Região Metropolitana de Porto Alegre (RS). E o ataque contra Cristina Kirchner foi na noite de quinta-feira (01/09), em Buenos Aires, praticado pelo brasileiro Fernando André Sabag Montiel, 35 anos – há matérias na internet. Não vou falar sobre o atentado. Mas vou aproveitar o episódio para refletir com os colegas e leitores sobre a mania do presidente Bolsonaro de ofender os parceiros comerciais e amigos de longa data do Brasil. Lembro que no debate dos candidatos à Presidência, na Band TV, ele citou o presidente do Chile, Gabriel Boric, de ter colocado fogo no metrô de Santiago durante os protestos de 2019. O governo do Chile protestou. A respeito da Argentina, Bolsonaro não perde uma oportunidade de atirar pedra contra a administração do presidente Alberto Fernández, dizendo que o país vai mal porque os seus dirigentes são de esquerda. No caso do atentado contra a vice-presidente argentina, a imprensa internacional, em especial a dos Estados Unidos e do Brasil, tem atribuído o episódio à radicalização gerada por grupos que lutam contra a democracia. Recentemente o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden (democrata), acusou o ex-presidente Donald Trump (republicano) de conspirar contra a democracia. Trump lidera no Partido Republicano o movimento Faça a América Grande de Novo, conhecido pela sigla MAGA – há matérias na internet.
Bolsonaro não é só admirador de Trump. Ele imita as práticas políticas do ex-presidente americano. O presidente brasileiro tem ameaçado não aceitar os resultados das eleições caso não seja reeleito. Não é por outro motivo que tem disparado chumbo grosso contra as urnas eletrônicas. Além disso, prometeu transformar o Dia da Independência em um grande protesto contra o Supremo Tribunal Federal (STF). Tenho dito, escrito e repetido que duvido que, em caso de derrota, o presidente chute o balde. Mas há um fato. A simples ameaça causa um tumulto na vida dos brasileiros porque mexe com os mercados, o que significa a desvalorização da moeda nacional, o real, frente ao dólar americano. Aqui quero observar o seguinte. Temos noticiado casos como o de Ivan Rejane Fontes, um desconhecido em Belo Horizonte (MG), que publicou um vídeo ameaçando os ministros do STF e o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que concorre à Presidência da República. Ele foi preso, virou notícia de destaque na imprensa e provavelmente vai tentar se candidatar a algum cargo em um futuro próximo. Essa maneira de abrir caminho para sair do anonimato veio para ficar. Como também veio para ficar a maneira de conseguir espaços nos noticiários ofendendo jornalistas, o esporte predileto de Trump e Bolsonaro. Dentro dessa realidade, tudo indica que a cada dia que passa a boa informação torna-se essencial na vida dos nossos leitores. O que é bom para nós, jornalistas.
Para arrematar a nossa conversa. Devido aos ataques que a imprensa tem sofrido, principalmente das milícias digitais, os mecanismos de verificação dos fatos evoluíram muito nesse período do governo Bolsonaro. Trabalhei em redação de 1979 a 2014 e quando olho para trás não parece que se passaram oito anos desde que sai de lá. Parece que foram séculos, graças aos avanços nos mecanismos de checagem de informações. Lembro que, nos anos 80, o que um jornalista escrevia era a verdade e pronto. Com a redemocratização do país, em 1985, os processos civis contra os jornalistas começaram a brotar por todos os cantos. E isso fez aparecer dentro das redações uma figura nova, o advogado do departamento jurídico da empresa, que era encarregado de verificar se o acusado em alguma reportagem teve a chance de dar a versão dele dos fatos. Nos dias atuais, além do advogado, existem as agências de checagem. A consolidação do jornalismo investigativo também acrescentou qualidade ao nosso trabalho. Vem aí uma avalanche de informações com as eleições, principalmente para presidente da República. Vamos ter pouco tempo para apurar devido o bafo na nuca da concorrência. Mas temos mais chances de acertar do que tínhamos antes. Portanto, quando colocarmos uma bronca na conta de alguém é porque são reais as chances de ele estar devendo.