Há dois assuntos ocupando as manchetes dos jornais que, se olhados de longe, parecem não ter relação. Mas se forem cuidadosamente autopsiados, podem revelar ligações que têm potencial para influenciar as eleições municiais de outubro e, talvez, fôlego para chegar à disputa presidencial de 2026. E sobre isso que vamos conversar. Vamos aos fatos, como diziam os editores dos jornais na época das barulhentas máquinas de escrever e das nuvens de fumaça de cigarro nas redações.
O primeiro assunto se refere à tragédia gaúcha causada pelas três enchentes que, no intervalo de nove meses, devastaram o Rio Grande do Sul, deixando mais de 200 mortos, dezenas de feridos e 40 desaparecidos, além de causar sérios danos à infraestrutura (destruição de pontes, estradas, plantações e prédios residenciais, industriais e comerciais) e trazer transtornos que ainda hoje são sentidos, como a interdição do Aeroporto Internacional Salgado Filho, que continua fora de operação, obrigando os gaúchos a descolamentos rodoviários de quase 500 quilômetros até Florianópolis, em Santa Catarina, para pegar um avião. A última e mais devastadora das enchentes, no mês de maio, consolidou nas redações dos jornais a ideia de que a tragédia foi um aviso que as mudanças climáticas não podem mais ser um assunto de pé de página. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), 78 anos, esteve três vezes no estado e montou, em Porto Alegre, a Secretaria Extraordinária para a Reconstrução do Rio Grande do Sul, nomeando como titular da pasta o ministro Paulo Pimenta, 59 anos, da Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República (Secom). A principal tarefa de Pimenta era facilitar o trâmite dos recursos (R$ 60 bilhões) entre o governo federal e o governador gaúcho Eduardo Leite (PSDB), 39 anos. Houve muitos problemas no trâmite destes recursos – matérias na internet. Os seguidores do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), 69 anos, que já tinham inundando o território gaúcho de fake news durante as enchentes, transformaram esses problemas em uma avalanche de mentiras. A tal ponto que, no interior do estado, virou assunto na disputa eleitoral mesmo em municípios que ficam a centenas de quilômetros dos locais atingidos pelas enchentes. No último final de semana (sexta-feira, sábado e domingo, dias 23, 24 e 25/8), estive em um desses lugares. Conheço o interior do Brasil e dos países vizinhos “como a palma da minha mão”, um dito popular que demonstra que alguém domina profundamente um assunto. E nunca tinha visto tamanho engajamento de pessoas em espalhar mentiras. O desgaste político que provocaram foi tão grande que o presidente Lula decidiu extinguir a secretaria extraordinária, que deverá ser incorporada à Casa Civil, com o ministro Pimenta retomando sua função na Secom a partir de setembro. Como é do conhecimento geral, o ex-presidente Bolsonaro foi penalizado pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) a ficar inelegível durante oito anos. E aposta na eleição municipal para eleger prefeitos e vereadores que serão os cabos eleitorais dos candidatos por ele indicados para concorrer a deputado, senador, governador e presidente da República em 2026.
A operação montada pelos bolsonaristas para espalhar mentiras sobre a atuação do governo federal na tragédia gaúcha conseguiu substituir nas manchetes dos jornais a devastação ambiental responsável pelas enchentes pela intriga. A tal ponto que na maioria das entrevistas dos representantes do governo federal a conversa girava em torno dos recursos que ainda não tinham chegado. Empresários que já estavam com problemas financeiros antes das enchentes tentaram aproveitar a oportunidade para “sair do buraco”, reclamando, em entrevistas na imprensa, que não tiveram acesso aos empréstimos subsidiados da União. Até o governador Leite aproveitou para atirar pedras no governo Lula. O comportamento do governador é do jogo político. Dos empresários, é caso de polícia. O fato é o seguinte. A máquina de distribuir fake news montada pelos bolsonaristas nos três estados do Sul do Brasil é azeitada, organizada e certeira. E a previsão dos entendidos em eleições é que deve garantir um número considerável de prefeituras na região. Agora, para funcionar esta máquina precisa da unidade entre os bolsonaristas. E é aqui que entra o segundo assunto: o racha entre os bolsonaristas nas eleições de São Paulo pode se estender para os estados do Sul e comprometer a eficiência da máquina de fake news? Tratei do assunto no post de terça-feira (27/08) A troca de “tapas e beijos” entre Bolsonaro e Marçal na campanha de São Paulo. O candidato a prefeito da capital paulista Pablo Marçal (PRTB), 37 anos, um ex-coach e influenciador de redes sociais, virou manchete nos jornais depois que ele apareceu empatado nas pesquisas eleitorais com o candidato apoiado por Bolsonaro, o atual prefeito Ricardo Nunes (MDB), 56 anos, que concorre à reeleição, e em empate técnico com Guilherme Boulos (PSOL), 42 anos. Marçal se aliou a Bolsonaro durante a campanha presidencial de 2018. Por sua conta e risco, ele forçou a barra e usou o nome do ex-presidente na campanha. Em consequência disso, envolveu-se em um bate-boca com um dos filhos parlamentares do ex-presidente, o senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ), 43 anos, e com o seu pai. Durante todo o seu mandato na Presidência, entre 2019 e 2022, quem desafiou Bolsonaro se deu mal. Muitos foram demitidos do governo, parlamentares não conseguiram se reeleger e pelo menos 12 generais do Exército que exerciam funções de ministros e coordenadores de órgãos governamentais perderam seus cargos.
Marçal desafiou o ex-presidente e sobreviveu conseguindo se consolidar no empate técnico com Boulos, enquanto o prefeito continuou descendo na pesquisa divulgada na quarta-feira (28/8). A análise dos números desta pesquisa mostra que, pela primeira vez, houve um racha significativo entre os bolsonaristas. A situação se agravou a ponto de, na quinta-feira (29/8), outro filho do ex-presidente, o vereador do Rio Carlos Bolsonaro (PL), 41 anos, precisar vir a público para tentar evitar uma rachadura ainda maior no bolsonarismo. Em uma postagem no X (antigo Twitter), relatou ter tido uma conversa amigável com Marçal, com quem já havia trocado farpas, e garantir que “queremos rumar nas mesmas direções”. Porém, uma parte dos bolsonaristas segue apoiando o prefeito e a outra, Marçal. As previsões dos entendidos em política é que este racha se amplie e se espalhe pelo país, em especial nos estados do Sul do Brasil. Se isso acontecer, vai influenciar na disputa presidencial de 2026. Os próximos resultados nas pesquisas eleitorais para a prefeitura de São Paulo vão dar uma ideia do tamanho da divisão entre os bolsonaristas. Conversei com bolsonaristas raiz do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina sobre o assunto. Resumo o que ouvi deles: a unidade é fundamental para manter a eficiência da máquina de fake news nos estados do Sul do Brasil.
Política é uma atividade fundamental para o funcionamento da civilização. O bolsonarismo, com suas fake news, só consegue deixar a política uma coisa repugnante. É típico do fascismo desacreditar a política para ninguém sentir falta dela quando eles tomam o poder.