Vejo uma oportunidade de fazermos uma reflexão sobre os rumos do jornalismo de bastidores na história da renúncia que não aconteceu do candidato a presidente da República João Doria, 64 anos (PSDB-SP), hoje ex-governador de São Paulo. É sobre a vulnerabilidade da apuração nos bastidores que vamos conversar. Antes vamos contextualizar os fatos. Doria ganhou o direito de ser candidato do PSDB à Presidência ao vencer, em eleições prévias do partido, o hoje ex-governador do Rio Grande do Sul Eduardo Leite, 37 anos. Fez 53% dos votos na prévia realizada em novembro de 2021. No dia seguinte à derrota, Leite e uma parte importante da direção do partido começaram uma conspiração contra a candidatura. Alegando que o ex-governador paulista não decolava nas pesquisas de intenção de votos, onde oscila entre 2% a 3%. Essa conspiração encontrou eco nas redações dos noticiários, porque existe um grupo de comentaristas políticos que investe na ideia de existir um candidato que represente uma terceira via na disputa presidencial, que está polarizada entre o presidente Jair Bolsonaro (PL) e o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT-SP).
Na madrugada de quinta-feira (31/03), os sites dos grandes jornais noticiavam que Doria deveria anunciar a desistência da sua candidatura no final da tarde daquele dia. Durante todo o dia, a informação se espalhou e ocupou espaços nobres nos noticiários. Doria, no entanto, fez o oposto: anunciou a sua renúncia ao governo de São Paulo e que continuava candidato do PSDB à Presidência da República – há dezenas de matérias sobre o assunto na internet. Assim termina a contextualização dos fatos. Voltemos à nossa conversa. A parte que nos interessa dessa história é como o jornalismo de bastidores não percebeu que estava caindo em uma cilada do ex-governador paulista? A resposta dessa pergunta não se resume em colocar a culpa em Doria. O que ele fez é do jogo. Percebeu a oportunidade e aproveitou. A resposta para a pergunta é que a decadência do jornalismo de bastidores começou com a crise que se instalou nos jornais com a fuga de anunciantes e assinantes para outras plataformas de comunicação. Com isso, centenas de jornalistas foram demitidos. Verbas que custeavam a investigação jornalística desapareceram. Os salários minguaram e a carga de trabalho aumentou violentamente. O jornalismo de bastidores é caro e demorado. É caro porque uma fonte importante não fala por telefone, por mais segura que seja a ligação, ou envia mensagens por aplicativos. A conversa é presencial, olho no olho. Isso muitas vezes implica o deslocamento do repórter. Já me aconteceu de precisar pegar um avião em Porto Alegre e ir até São Paulo para ter uma conversa reservada com uma fonte para uma matéria que estava fazendo envolvendo a máfia chinesa, corrupção policial e contrabando do Paraguai. O fiador do encontro foi um advogado. Fiador é o nome que se dá a quem garante que o acordo verbal entre as partes será cumprido. É demorado porque exige que o repórter cruze as informações que apurou com outros dados. Não tem como fazer isso hoje em dia. O que se faz é uma apuração superficial e o que se descobre é noticiado.
Enquanto as redações contam os centavos para sobreviver, os nossos entrevistados nunca tiveram tantos recursos a sua disposição para se preparem para as entrevistas. Como vamos sair dessa? Essa não é a primeira crise que as redações vivem. A diferença é que nas outras crises os jornais eram administrados pela família do fundador, gente nascida e criada no meio. Claro, isso nunca foi uma garantia de empresa bem administrada. Muitas faliram. Mas era mais fácil conversar com quem era do ramo. Nos dias atuais, em que as empresas viraram sociedades anônimas e são administradas por CEOs, um pau-mandado dos acionistas que está ali para fazer dinheiro e o resto é o resto, a saída que estão trabalhando para a crise é misturar jornalismo com entretenimento e matérias comerciais (elas vêm com um aviso que são pagas). O fato é o seguinte. Estamos vivendo um daqueles momentos na história da humanidade que a informação precisa e confiável é fundamental para sobrevivermos às dificuldades que nos rodeiam. Vou citar dois casos recentes. A pandemia causada pela Covid-19. Para sobreviver ao vírus a população exigiu das redações um fluxo enorme de informações para separar a verdade das fake news espalhadas pelos negacionistas. E a atual guerra travada entre a Ucrânia e a Rússia, que está sendo transmitida online para o mundo. As consequências desse confronto estão afetando a economia ao redor do planeta. Trocando em miúdos. Esse imenso fluxo de informações significa dinheiro que as empresas jornalísticas estão ganhando. Onde estão aplicando esse dinheiro? Estão investindo parte desse lucro nas redações? Pelo que eu sei, as demissões continuam e as viagens em busca de boas histórias para contar seguem canceladas.
Tive uma longa conversa com um empresário do ramo de comunicação que conheci em São Paulo. Hoje ele trabalha como consultor para jornais. Disse que as empresas de comunicação que aproveitarem o dinheiro e aplicarem parte dele na reestruturação da sua atividade vão conseguir permanecer no mercado. As outras tendem a desaparecer. Brinquei com ele dizendo: “Vai acontecer uma espécie de seleção natural?”. Ele respondeu, igualmente brincando: “É por aí”. E como nós jornalistas ficamos no meio dessa história? Os bons tempos não vão voltar. O que vem aí pela frente é uma enorme exigência na nossa formação. As faculdades de jornalismo precisam se dar conta que só ensinar para os seus alunos as técnicas para apurar, escrever e publicar uma notícia não irão mais assegurar a vida profissional de ninguém. É necessário sair da faculdade encaminhado para um ramo especializado do jornalismo. Bato na tecla de que existe no mundo atualmente uma enorme demanda por informações precisas. Elas são tão necessárias para a sobrevivência das pessoas como os alimentos que são produzidos pelos agricultores. Nós jornalistas vamos cavar e escrever essas informações. Como elas chegarão às pessoas é outra história.