A disputa entre o procurador-geral da República, Augusto Aras, e os seus colegas pelo destino da Operação Lava Jato é um baile de cobras, e das bem venenosas. Em linhas gerais, Aras quer centralizar as informações sobre os processos e investigações da Lava Jato. O procurador da República Deltan Dallagnol é contra a centralização. Ele é o coordenador da operação em Curitiba (PR). A Lava Jato foi e ainda é o símbolo da luta contra a corrupção no Brasil. No seu auge, em 2017, o então juiz Sergio Moro, da 13ª Vara Federal de Curitiba, condenou por corrupção e lavagem de dinheiro o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). A condenação foi confirmada em segunda instância. Lula foi preso e perdeu o direito de disputar as eleições presidenciais, beneficiando o seu principal adversário, Jair Bolsonaro, que se elegeu. Moro abandonou a carreira de magistrado e se tornou ministro da Justiça e Segurança Pública do presidente Bolsonaro. Por conta disso surgiu no meio dos jornalistas um grupo que foi apelidado de “viúvas do Moro”. Nada nos dividiu mais que a Lava Jato.
Esse era o cenário até Moro se demitir do governo, em abril. Ele saiu atirando contra Bolsonaro e se tornou um potencial candidato às eleições presidenciais de 2022 – há matérias na internet. Agora o jogo é outro. As suas regras e personagens estão nas entrelinhas das nossas matérias. Aras foi uma escolha pessoal de Bolsonaro para o cargo, ele não constava na lista tríplice dos candidatos mais votados pela categoria para ocupar a Procuradoria-Geral da República (PGR). Portanto, é “pau mandado” de Bolsonaro. Dallagnol, como consta nas denúncias sobre irregularidades na Lava Jato feitas pelo site The Intercept Brasil, tem uma relação muito afinada com ex-juiz – matérias na internet. Logo, é “pau mandado” de Moro. Essa disputa pelo destino do espólio da operação acontece em meio a uma inédita crise sanitária provocada pela Covid-19, que já matou mais de 90 mil brasileiros e infectou mais de 2,6 milhões. É nesse cenário que nós repórteres estamos transitando na busca de bem informar ao nosso leitor. Se mesmo para um jornalista experiente e com tempo para apurar os dados e refletir sobre as informações é difícil escapar de escrever alguma bobagem, imaginem o que sobra para os jovens repórteres que hoje são a maioria nas redações e cumprem três a quatro pautas diárias – produzindo texto, imagem, áudio e fotos.
Como o repórter que faz a cobertura do dia a dia deve trabalhar num ambiente como esse? Antes de responder à pergunta vou contar uma história. Nas redações barulhentas e enfumaçadas pelos cigarros dos tempos da máquina de escrever cenários desse tipo eram descritos como “baile de cobra”, uma expressão muito popular no interior do Brasil, usada para designar uma disputa entre competidores muito bem informados, astutos e determinados a ganhar a parada. Por ter focado a maior parte da minha carreira de 30 e poucos anos de repórter na cobertura de conflitos agrários, crime organizado nas fronteiras e migrações, envolvi-me em coberturas de muitos “bailes de cobra” que, acossado pela concorrência, exigiram decisões rápidas. Voltando à pergunta, vou relatar algumas coisas que aprendi que deram certo e errado. Nesse tipo de cobertura, o texto precisa ser feito de frases curtas e diretas. Sempre que usamos um verbo condicional acabamos nos enrolando, porque entramos no jogo de um dos lados. Exemplifico: um dos lados faz uma declaração forte dizendo que “o mundo é amarelo”, sem dar maiores detalhes. Por nossa conta, saímos ligando a declaração a situações que julgamos conhecer. Aqui é o seguinte: por experiência própria, digo que, no início da profissão, o repórter do cotidiano é muito influenciado pelo conteúdo dos colegas comentaristas políticos. Com o tempo e depois de escrever muita bobagem a gente aprende que os comentaristas dão a opinião deles. Não significa que as coisas sejam como descrevem. Se no final tudo sair bem para o seu lado, o autor da declaração de que “o mundo é amarelo” fica com os créditos. Se der errado, ele alega, por exemplo, que só falou “amarelo”, e que deduzimos o resto por nossa conta. Ou seja: a fonte fez o que chamamos de “balão de ensaio” – espalhou uma história para ver a sua repercussão. Trocando em miúdos, nos usou para “vender o peixe dele”.
Na questão da disputa pelo destino da Lava Jato, o que temos de certeza? A maior delas é que Bolsonaro e Moro têm direito de se organizarem e disputarem a Presidência da República. Agora, o que nós repórteres temos que deixar bem claro para o nosso leitor é que a luta contra a corrupção no Brasil não nasceu com a Lava Jato. Ela nasceu nas masmorras da Ditadura Militar (1964 a 1985), quando presos políticos foram torturados, mortos, expulsos do país pelos generais que governavam o Brasil. Foram os presos, regando com o seu sangue, somado ao sofrimento daqueles que lutaram nas ruas contra os militares, que fizeram renascer a democracia em 1985. A Constituição de 1988 foi o chute inicial que começou a formação de um aparato de leis e normas que facilitaram a luta contra a corrupção. Trocando em miúdos. Imaginem que a Constituição fosse uma cervejaria que produz muitas marcas de cerveja. A Lava Jato seria uma delas. Nós jornalistas não sabemos 100% do que aconteceu de certo e errado dentro das quatro paredes da operação. O material publicado pelo The Intercept Brasil ajudou bastante. Mas ainda falta muita coisa.
O certo é que nem Aras nem Dallagnol irão nos contar os segredos da operação. O interesse deles é só “vender o peixe”. O repórter aprende com o passar dos anos que cometer um erro de informação ou de digitação, que é o mais comum, em um texto não é o maior dos nossos pecados. Ele pode ser corrigido. O maior dos nossos pecados é a ignorância sobre os fatos, o que nos torna presas fáceis dos interesses das fontes. Nós não conhecemos em profundidade os acertos e os erros da Lava Jato. Isso temos que deixar claro para os nossos leitores. Já é meio caminho andado. E também nos facilita o trabalho no “baile de cobra”. É simples assim.
Prezado Carlos, as duas partes estão certas, em partes. O Aras é chefe da Instituição, responde por ela, responde pelo orçamento dela. Não existe rubrica orçamentária (daí, aprovada pelo Legislativo) “lava jato”. Deve existir o órgão do MP regional, com sede em Curitiba. Claro o direito do Procurador Geral ter acesso a todos conteúdos da Instituição que dirige.
Por outro lado, os procuradores integrantes da “lava jato”, operaram e operam um dos melhores grupos do estado que produziram resultados consequentes no desvio secular do tesouro público, haja vista as prisões dos diretores da Petrobrás e da cúpula dos empreiteiros, chefes do efetivo crime organizado do país. Respaldam-se, entretanto, na convicção de que as garantias de independência dos membros do Ministério Público, para o ecerciciode suas funções, constituiem um “poder” independente da própria estrutura do Estado. Tal não encontra respaldo em nenhum ordenamento jurídico, a começar pela lei orçamentária, em vigor após aprovação do Legislativo.
Um bom e esclarecedor comentário. Um grande abraço.