Não sei se esta perfila-se entre as disputas eleitorais mais interessantes da história do Brasil. Mas, para a minha geração de repórteres, ela é única por representar o fim de um ciclo político que começou em 1985 com a instalação da Nova República, que foi a substituição dos militares no poder pelos civis. Em 1964, as Forças Armadas, aliadas com civis e os Estados Unidos, derrubaram o então presidente eleito do Brasil, João Goulart, o Jango, do antigo PTB gaúcho, e instalaram-se no poder até 1985. Eu comecei a trabalhar em redação de jornal nos primeiros dias de janeiro de 1979 e sai em dezembro de 2014, aos 64 anos e uns meses de idade. Como disse certa vez um amigo meu, que creio ter sido o repórter Ricardo Kotscho: passei para o outro lado do balcão. No caso, o outro lado do balcão é o nosso leitor, a pessoa que consume diariamente os conteúdos que as redações despejam nos noticiários. E as informações que transitam pelas redes sociais.
Claro, estar do outro lado do balcão é bem diferente do que a loucura da corrida atrás das informações em uma redação. Mas é igualmente interessante. E as regras são outras. Uma coisa é chegar a uma pessoa, identificar-se como repórter e começar a bombardeá-la com rajadas de perguntas. Outra coisa é começar uma conversa de igual para igual, sem a preocupação de correr para redação para fazer a notícia. Pouco antes da votação do primeiro turno, eu estava na seção de bebidas de um supermercado. E vi um casal de pessoas, dos seus 65 anos, conversando sobre cervejas. Aproximei-me e disse: “como tá caro ficar bêbado, né?” Conversamos uns 10 ou 15 minutos. E, no meio da conversa, entrou o assunto sobre as eleições. Não perguntei qual era a profissão deles, a idade e, muito menos, sua opinião a respeito da disputa eleitoral. Deixei fluir a conversa. Partiu da mulher um comentário que achei muito interessante. Ela disse que estava preocupada com a situação econômica do país porque tem dois netos que terminam a faculdade no fim do ano e não vão conseguir emprego.
No caminho do estacionamento, eu fui pensando: há milhares de universitários que estão concluindo os seus cursos no fim do ano e vão sair para um mercado de trabalho totalmente diferente do que aquele que existia na época em que começaram os seus cursos. A menos de uma década, o país vivia o pleno emprego, e centenas de famílias investiram na formação dos seus filhos, acreditando que, finalmente, o futuro havia chegado no Brasil. Como faço diariamente, naquele dia vasculhei três vezes, em horários diferentes, os conteúdos dos noticiários – jornais, sites, rádios e TVs (aberta e a cabo) em busca de alguma coisa sobre esse assunto. Não encontrei nada relevante. Encontrei alguma coisa nos grupos de Whatsapp familiar de que participo. É uma baita história a geração que vai terminar a faculdade no final do ano e sair na busca de emprego no Brasil que será desenhado por quem vencer as eleições no próximo fim de semana.
Como essa história do supermercado, eu tenho várias anotadas no bloco. Boa parte delas é no campo das paixões políticas, o pano de fundo da disputa presidencial entre Fernando Haddad (PT – SP) e Jair Bolsonaro (PSL – RJ). Eu estou incluído no batalhão de repórteres que achava que Bolsonaro era só mais uma figura exótica da política brasileira. A primeira vez em que o notei foi quando fez uma homenagem ao coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra (falecido em 2015), homem que implantou a tortura nos porões da ditadura brasileira. Foi durante o impeachment da então presidente da República Dilma Rousseff, em 2016. Bolsonaro é capitão da reserva do Exército e, durante os 26 anos da sua carreira política, sempre exaltou os golpistas de 1964. Portanto, durante o impeachment, seguiu o roteiro da sua carreira. Comecei a leva-lo a sério quando, durante uma entrevista na Globo News, ele foi desrespeitoso com os jornalistas. Os meus colegas ficaram sem ação, perante a lembrança dele de que a Globo havia apoiado o golpe de 64 e que a Editora Abril tinha sido fundada naquela época. Jamais tal coisa tinha acontecido no Brasil. As relações da Globo e da Abril com os golpistas são assunto dos proprietários das empresas. Não dos entrevistadores. Fiquei surpreso porque nenhum dos colegas mandou ele catar coquinhos.
Mas foi na agressão dele aos jornalistas que comecei a leva-lo a sério. Pensei: ele segue o roteiro do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, que elegeu a mídia sua inimiga. Na semana passada, eu estava em uma livraria e comecei a conversar com um jovem universitário. O assunto eleição veio à conversa com naturalidade. Durante o papo, disse que o apoio de Bolsonaro a Ustra era um absurdo. Sem alterar o tom de voz, ele me disse: “quem é Ustra?”. Ao ouvir a pergunta, eu lembrei de uma frase dita pelo colega repórter Nilson Mariano: “me caíram os butiás do bolso”. Um modo de gaúcho do interior dizer que foi surpreendido. Fiz um pequeno resumo de quem foi Ustra para o jovem. Ele perguntou se eu era professor. Disse que não. Mas não falei que era repórter. Saí da livraria pensativo e fui beber um chope em um boteco. No segundo copo, eu lembrei que, várias vezes nas conversas na redação, reclamei que os repórteres argentinos, uruguaios, chilenos e paraguaios parecem que vivem no passado. Lembro de ter conversado isso com colegas do ABC Color, principal jornal do Paraguai, durante uma bebedeira em Assunção. Os castelhanos sempre ficam lembrando quem foi quem nas ditaduras militares. Aqui no Brasil, falamos durante os primeiros anos da democratização e, depois, varremos o assunto para debaixo do tapete. Portanto, nada mais natural que o jovem não soubesse que foi Ustra.
Há uma enorme confusão do lado de cá do balcão. Muita gente acredita que as criticas contra Bolsonaro são porque ele é capitão da reserva do Exército. Não são. Seria um absurdo se fosse. As criticas são porque ele é defensor dos ideais dos golpistas de 64, incluindo o uso da tortura como método de interrogatório. Falta uma reportagem que explique isso. Como leitor, tenho a ideia de que os conteúdos dos noticiários passam que Bolsonaro é sinônimo de Forças Armadas. Isso precisa ser melhor explicado.
A questão, CW, é que a maioria das pessoas não quer saber quem foi Ustra. A resposta dessas pessoas é que o passado não interessa. A gente tenta, mas é difícil.
Sabe? Nas redações – onde vivi de 1983 a 2014 – o passado sempre foi notícia considerada exótica, coisa de velho como falam. Daí ele aparece e nos dá uma tapa da cara como é o caso do Ustra. É um absurdo.