Por serem formadas por pessoas treinadas e armadas pelo estado e com acesso a informações privilegiadas, as milícias são o inimigo público número um do Brasil. Organizadas para atuar nas favelas cariocas nos anos 2000, essas organizações criminosas são formadas por policiais (civis e militares), bombeiros, vigilantes e agentes penitenciários e vêm se espalhando pelo país a uma velocidade que surpreende a todos os especialistas.
A forma como se organiza a milícia a torna mais letal que os seus dois principais concorrentes: as facções Comando Vermelho (CV), do Rio de Janeiro, e o Primeiro Comando da Capital (PCC), de São Paulo. Tanto o CV quanto o PCC são formados por traficantes – a maioria, conhecidos com extensas fichas criminais – presos ou procurados pela Justiça. Portanto, os bandidos do CV e do PCC são pessoas não só conhecidas como respondem a vários processos por crimes. A maioria dos milicianos não só não é conhecida como está infiltrada na máquina policial e na administração do estado. O que significa que, além de terem conhecimento das estratégias usadas pelas autoridades para combater a ação das milícias, eles têm acesso a informações privilegiadas de todo brasileiro que tem uma simples carteira de identidade. Basta acessar aos computadores das corporações policiais.
Outra grande e fundamental diferença entre as milícias e as facções. O PCC e o CV ganham dinheiro traficando drogas, armas e munições. As milícias, vendendo proteção para as comunidades pobres, TVs a cabo piratas, transporte, gás de cozinha e outros insumos. Há um relato muito detalhado sobre o assunto na CPI das Milícias, em 2008, presidida, por Marcelo Freixo (PSOL), na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, e nos estudos do Núcleo de Pesquisa de Violência da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Esse é o contexto. Ele não é novidade para nós, repórteres, e para a maioria dos nossos leitores. A novidade no assunto é a velocidade com que essa forma de organização criminosa entre os agentes do estado vem avançando pelo país. E, nós, repórteres, temos que explicar aos nossos leitores, de uma maneira simples, objetiva e consistente, os motivos pelos quais as milícias estão em um processo de expansão no território nacional.
Hoje as milícias não são um problema apenas carioca. São um problema nacional, e o seu cartão de apresentação para a comunidade mundial foi a execução da vereadora Marielle Franco (PSOL) e do seu motorista Anderson Gomes, em março, no Rio de Janeiro. O Rio está sob intervenção federal, devido aos problemas da segurança pública. E mesmo com recursos ilimitados as investigações sobre a execução ainda não foram concluídas. Aqui cabe uma pergunta: a dificuldade em resolver o caso da vereadora e do seu motorista tem alguma ligação com o fato da infiltração dos milicianos na máquina administrativa do Estado do Rio de Janeiro? A única certeza que existe na investigação é que foi coisa dos milicianos. A opinião pública mundial cobra do Brasil a solução do caso. Antes de seguir contando a história, eu quero deixar claro uma coisa.
O que vou escrever daqui para frente não é opinião, são fatos que testemunhei ao longo de 40 anos de carreira como repórter investigativo. As milícias não têm um controle central. A maneira como os milicianos se organizam despertou o interesse entre os policiais corruptos espalhados pelo Brasil, que viram uma maneira de expandir os seus negócios ilícitos e ganhar mais dinheiro. A respeito da corrupção policial no Brasil: ela se consolidou nos anos em que a imprensa era censurada no pelos militares (1964 1985). Nessa época, as polícias eram praticamente um braço dos grandes banqueiros do jogo do bicho – há um farto material disponível na internet. Com a democratização do país, a questão da corrupção policial era notícia de pé dos jornais porque havia outros problemas, principalmente na área social, a serem tratados. Foi justamente o surgimento das milícias cariocas nos anos 2000 que colocou na pauta dos grandes jornais a questão da corrupção policial. E hoje, como se fosse uma franquia, o modo de operar das milícias se consolida pelos núcleos de policiais corruptos existentes nas organizações policiais das regiões metropolitanas do Brasil.
Hoje os policiais têm dois recrutadores ilícitos: o bico que é trabalhar nas horas vagas como segurança privada. E a corrupção que o torna um miliciano. O trabalho dos recrutadores tem sido facilitado pela penúria em que vive a categoria com baixos salários, atraso no pagamento dos soldos e excessiva carga de trabalho. A diferença entre um político corrupto e um policial é que o parlamentar tem uma caneta na mão, e o agente, uma arma e o treinamento para usá-la. Nós, repórteres, temos que contar melhor essa história aos nossos leitores.
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