Não é de hoje. Mas nas últimas duas décadas vem crescendo e tomando corpo uma reclamação entre os dirigentes dos sindicatos de trabalhadores no Brasil. Até há alguns anos, as empresas brasileiras, inclusive as grandes, eram administradas pelos seus donos, auxiliados por familiares e executivos. Isso facilitava as negociações com os sindicatos, porque as empresas tinham um rosto. Hoje, elas são comandadas por um diretor executivo, conhecido pela sigla em inglês CEO (Chief Executive Officer). Ele responde ao conselho de acionistas, que são os donos da empresa – fundos de investimentos, bancos e outros grandes e pequenos investidores. Consequentemente, as empresas não têm mais um rosto. Têm um CEO, que segue as estratégias determinadas pelos acionistas, e cujo emprego depende do cumprimento das metas. Em linhas bem gerais, o quadro que descrevi serve para explicar o apagão do Amapá. É sobre isso que vou conversar com os meus colegas, principalmente os jovens repórteres que estão na correria da cobertura diária dos acontecimentos, como diziam os editores nas redações dos tempos das barulhentas máquinas de escrever.
Vamos aos fatos. Na primeira terça-feira do mês, 3 de novembro de 2020, um incêndio em um dos transformadores da subestação de Macapá, capital do Amapá, deixou sem energia elétrica até o dia 20 de novembro de 2020. boa parte dos 800 mil habitantes do estado. Os prejuízos econômicos e morais que a população vem acumulando pela falta de energia são enormes. Mas os consumidores vão cobrar de quem os seus prejuízos? A empresa responsável pela subestação é a Linhas de Macapá Transmissora de Energia (LMTE), que é controlada (detém 85% das ações) pela Gemini Energy, um grupo estrangeiro com sede no Rio de Janeiro (RJ). A Gemini, por sua vez, é controlada pelo Starbord Asset, um fundo de investimentos que opera com empresas em dificuldades financeiras. Trocando em miúdos, com diz o dito popular: quem os consumidores vão acionar na Justiça pedindo ressarcimento dos seus prejuízos? Até hoje, eu li, ouvi e assisti a todas as matérias publicadas nos jornais (papel e sites), rádios, TVs e outras plataformas sobre o “rolo do Amapá”. A mais completa que encontrei foi a das repórteres Nayara Felizardo e Tatiana Dias, publicada no site The Intercept Brasil – Apagão no Amapá: a série de negligências da empresa que tentava se livrar do serviço.
As empresas sem rosto dos dias atuais são uma marca do nosso tempo. A Constituição de 1988 previu vários mecanismos para mantê-las na linha. Em 1996, foram criadas as agências reguladoras, para vigiar as empresas que atuam na área de serviços concedidos pelo estado – energia, telefonia, água e esgoto e outros. No caso do apagão do Amapá, a responsabilidade é da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel). Se ela tivesse feito o seu trabalho, os amapenses não estariam hoje vivendo o inferno da falta de luz. Como também falharam os órgãos de fiscalização nos episódios do rompimento das barragens de rejeitos de Mariana, em 2015, e Brumadinho, em 2019, ambas em Minas Gerais, que causaram a morte de 273 pessoas, deixaram duas dezenas de desaparecidos e poluíram vários rios. As duas barragens pertencem à mineradora Vale do Rio Doce, ex-estatal que hoje é uma empresa sem rosto. Para outros setores foram criados os Grupo Executivo de Proteção ao Consumidor, conhecidos como Procon. Lembro que nos 80 e 90 os noticiários eram recheados de matérias relacionadas à defesa do consumidor. Nos anos seguintes, as empresas se organizaram e criaram os seus próprios serviços de atendimento a seus clientes. O que facilitou muito a vida de todo mundo. Uma boa olhada nos noticiários atuais mostra que o assunto defesa do consumidor foi esquecido pelos jornalistas. Não é por outro motivo que as redes sociais passaram a ter um papel importante nesse setor. A coisa funciona assim: o consumidor “bota a boca no trombone” pelas redes sociais e, na maioria das vezes, consegue resolver o seu problema.
A questão do consumidor é muito complexa para a imprensa virar-lhe as costas e deixá-la a cargo das empresas e das redes sociais. O número de matérias que temos publicados sobre as agências reguladores é insignificante. A maioria delas são cabines de emprego e operam sem estrutura para cumprir a sua tarefa. Voltar a dar atenção ao consumidor, ficar de olho nas agências e nos órgãos de proteção, é uma maneira de sermos relevantes aos nossos leitores. Mais uma coisa. Não é fácil. Mas precisamos aprender como funciona esse cipoal financeiro que sustenta as empresas sem rosto. Digo o seguinte. É escassa a possibilidade de que alguém sente no banco dos réus para responder pelos prejuízos econômicos e morais causados à população do Amapá pelo apagão. E nós jornalistas temos culpa nessa situação por não termos ficado de olho na Aneel. Hoje as empresas não têm rosto como antigamente. Não sabemos que é o dono. Mas a marca delas está escrita na parede. É por aí, colegas.