São civilizatórias as propostas de legalizar os jogos e descriminalizar o usuário de maconha

Legalização dos jogos de azar acaba com uma importante fonte da corrupção policial Foto: EBC

Há duas histórias circulando que parecem não ter conexão. Mas têm. Trata-se da aprovação, na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado, do Projeto de Lei 2234/2022, do deputado Renato Vianna (MDB-SC), que libera os bingos, os cassinos, o bicho e outros jogos de azar. O PL deverá ir a plenário e, ser for aprovado, o presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva (PT), adiantou que vai sancioná-lo. A outra é a decisão dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) de descriminalizar o usuário da maconha, que pode possuir até 40 gramas da droga ou seis pés da planta fêmea. A conexão entre os dois assuntos é que eles fazem parte do mesmo berço no qual nasceu, cresceu e se fortaleceu o crime organizado no Brasil. Na questão dos jogos, os bicheiros cariocas iniciaram o que hoje chamamos de crime organizado. E a criminalização dos usuários de drogas, em especial da maconha, ajudou a encorpar a população carcerária brasileira, que soma mais de 834 mil detentos (644 mil encarcerados e 190 mil em prisão domiciliar), onde foram geradas as duas mais importantes organizações criminosas da América do Sul, o Primeiro Comando da Capital (PCC), de São Paulo, e o Comando Vermelho (CV), do Rio de Janeiro. Vamos falar sobre o crime organizado. A polêmica sobre esses dois assuntos ocupa os espaços nobres dos jornais, portanto recebe cobertura diária da imprensa. Vamos aos fatos.

A maior máquina de corrupção policial e de outras autoridades são os jogos de azar, em especial o bicho. Na década de 90 fiz uma série de reportagens investigativas sobre os bicheiros do Rio Grande do Sul. Não existiam inquéritos policiais sobre as brigas deles por território e muito menos dos raros casos de corrupção policial que vinham à tona. Lembro-me que durante a apuração conversei muito com jovens policiais que recém tinham saído da academia cheios de boas intenções. Começavam a trabalhar em uma delegacia e não tinham como ficar fora do esquema. Inclusive, em Caxias do Sul, encontrei um grupo de inspetores de polícia que montaram um grupo que não aceitava propina. Foram apelidos pelos seus colegas de “Joãozinho do passo certo”. Durante meio ano bati de porta em porta para montar a matéria. A minha maior dificuldade era que os donos das bancas de bicho criaram um mito de que eram o único negócio honesto do Brasil. Quem apostava e acertava, recebia o prêmio. Correto, o ganhador recebia. Só que as lotéricas e todo o aparato de sorteio dos números pertenciam ao dono da banca. Que manipulava os resultados. Também trabalhei no Rio de Janeiro, vitrine nacional dos bicheiros. Eram os donos do campinho. Até que, em 1993, a então juíza Denise Frossard prendeu, julgou e condenou os 14 principais banqueiros do jogo do bicho do Rio, entre eles Castor de Andrade, o maior e mais popular bicheiro do Brasil. A prisão dos bicheiros acelerou um processo de mudança no jogo do bicho. Os banqueiros começaram a diversificar os seus negócios, operando cassinos clandestinos, jogos eletrônicos e outras atividades criminosas. No atual momento, eles usam milicianos como guarda-costas e pistoleiros para resolverem suas disputas por território. Há um livro que conta parte desta história, do repórter Sérgio Ramalho, Decaído, que esmiúça a vida de Adriano da Nóbrega, ex-capitão do Batalhão de Operações Especiais, do Rio de Janeiro, o Bope do filme Tropa de Elite.

Uma coisa é certa. Se houver um campeonato de cuspe a distância, os bicheiros cariocas estarão no meio. A legalização dos jogos não nos livrará deles em um passe de mágica. Mas iniciará um processo que a longo prazo colocará no comando dos negócios outro tipo de pessoa. A questão da separação do traficante do usuário abre caminho para que o consumo de maconha seja tratado como um problema de saúde pública. Nos dias atuais, os pais têm medo de falar sobre o problema para evitar a prisão dos filhos. Ainda não se tem números. Mas existe, entre autoridades e estudiosos, a crença de que uma boa parte dos presos por tráfico de drogas na verdade são consumidores que foram apanhados com pequenas quantidades de maconha e acabaram sendo condenados como traficantes. Aqui é o seguinte. Este perfil de preso acaba sendo recrutado pelas facções criminosas e se torna bandido profissional. O PCC e o CV se perfilam entre as grandes organizações criminosas do mundo. Elas se estabeleceram nos países vizinhos, em especial no Paraguai, onde montaram um entreposto de armazenamento de cocaína trazida da Colômbia, do Peru e da Bolívia que abastece o mercado consumidor brasileiro, dos países europeus e dos Estados Unidos. Na década de 90, encontrei a turma de Luiz Fernando da Costa, o Fernandinho Beira Mar, em Capitán Bado, pequena cidade do Paraguai que faz fronteira com o município brasileiro de Coronel Sapucaia, no oeste do Mato Grosso do Sul. Ele estava foragido e com apenas um aparelho celular conseguiu fazer um grande negócio com os cartéis de cocaína colombianos, que eram protegidos pelos guerrilheiros das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc). Beira Mar propôs e os colombianos aceitaram trocar cocaína por armas, munição, medicamentos e víveres. Este negócio tornou o CV uma organização criminosa poderosa. Logo, o PCC também montou um entreposto no Paraguai e começou a se infiltrar nas prisões do país.

Não sei e creio que ninguém saiba o destino da final do PL dos jogos e da sentença do STF separando o traficante do usuário de maconha. Mas o simples fato deles existirem já coloca o Brasil entre um seleto grupo de países que tratam problemas deste calibre de maneira civilizada. Já é um bom começo.

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