Há muitas coisas boas e ruins de se estar fora da redação de um jornal. Trabalhei em redação de 1979 a 2014 e, por ter me especializado em conflitos agrários, crime organizado nas fronteiras dos países vizinhos e migrações internas, na maior do tempo estava viajando pelas estradas dos fundões do Brasil à procura de histórias. Na segunda-feira (20), vivi um dos bons momentos de estar fora da redação durante a posse do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump (republicano), 78 anos. Por quê? Tive tempo de ler as principais matérias que foram publicadas durante a primeira posse de Trump como presidente em 2017. E também sobre a tentativa dele de impedir a posse de Joe Biden (democrata), 82 anos, mandando seus seguidores invadir o Capitólio (Congresso), em 6 de janeiro de 2021. E o mais importante: tive a oportunidade de refletir sobre o que li. O destino do governo Trump será decidido diariamente nos embates políticos que acontecerão com o Congresso e a sociedade organizada. Para se ter uma ideia do que vai acontecer nos próximos meses recomendo a leitura de dois livros: Casta – As origens de nosso mal-estar, de Isabel Wilkerson, e A Mente de Adolf Hitler – O relatório secreto que investigou a psique do líder Alemanha nazista, de autoria de Walter C. Langer.
Os acontecimento diários relevantes da posse e dos dias seguintes do novo governo americano ostentam as primeiras páginas dos jornais. Há um deles que merece ser melhor esmiuçado pela imprensa. É a saudação nazista feita durante um discurso no dia da posse pelo bilionário Elon Musk, 53 anos, dono do X, antigo Twitter. Ele chefia o recém-criado Departamento de Eficiência do Governo (Doge) – o magnata Vivek Ramaswamy, que seria codiretor do órgão, desistiu para se dedicar ao seu projeto de concorrer ao governo de Ohio, em 2026. A respeito da saudação feita por Musk, os jornais consultaram uma dúzia de historiadores e especialistas no assunto, sendo que nove a descreveram como uma saudação nazista. Musk afirmou que não é nazista. Por muito tempo essa discussão ocupará lugares nobres nos jornais. Por conta da repercussão do assunto, lembrei-me de uma conversa que tive com um repórter americano freelancer (profissional sem vínculo de emprego com jornais) que conheci em uma cidadezinha no interior do Pará, quando fazia uma reportagem sobre a proliferação de madeireiras asiáticas na Floresta Amazônica. À noite, em um boteco perto do hotel, tomávamos cerveja e conversávamos sobre um monte de coisas. Foi no meio de papo que o colega falou que cresceu ouvido as histórias contadas pelo seu avô sobre a Segunda Guerra Mundial. Ele foi um dos soldados que participaram do Dia D, nome pelo qual ficou conhecido o dia 6 de junho de 1944, quando as tropas aliadas desembarcaram nas praias da Normandia, na França, então ocupada pelos exércitos da Alemanha nazista. Cerca de 4,4 mil soldados aliados morreram naquele dia, e mais de 200 mil na Batalha da Normandia, que se seguiu aos desembarque e que foi decisiva para a derrota dos nazistas, em maio de 1945. A saudação nazista feita por Musk é um desrespeito à memória dos soldados aliados mortos na Segunda Guerra Mundial.
As família americanas, me disse o colega lá no interior do Pará, levam muito a sério a memória dos seus soldados mortos nas guerras. Musk, que tem como característica usar as palavras e os gestos mais agressivos na hora de fazer valer a sua opinião, se deu conta da bobagem que fez e agora está tentando atirar a bronca da saudação nazista no colo da imprensa. Ocorre que a partir da posse de Trump o bilionário não é apenas um empresário bem-sucedido. Ele agora fala pelo governo dos Estados Unidos. Portanto, não pode desrespeitar a memória dos soldados mortos na luta contra o nazismo. Uma das maiores máquinas publicitárias do mundo, a indústria cinematográfica de Hollywood reforça, em seus roteiros, esse respeito aos que enfrentaram o nazismo. Como é o caso do filme O Resgate do Soldado Ryan, que conta a história de quatro irmãos que participaram dos combates do Dia D. Três deles morrem. O comando das tropas americanas destaca então uma patrulha, chefiada pelo capitão John Miller (Tom Hanks, 68 anos), para resgatar o irmão sobrevivente, James Ryan (Matt Damon, 54 anos), atrás das linhas inimigas e, com isso, evitar que a sua mãe perca os quatro filhos. Dirigido por Steven Spielberg, 78 anos, o filme termina em um cemitério de soldados mortos na guerra. Os livros de histórias ensinam para nós repórteres que antes do início da Segunda Guerra, em 1939, os nazistas alemães conseguiram montar importantes partidos de extrema direita nos Estados Unidos, no Brasil e na Argentina. Estes nazistas sobreviveram ao conflito e nos dias atuais são importantes pilares sobre os quais está se estruturando a nova extrema direita. A realidade é que voltaram à disputa política. A função da imprensa é lembrar os horrores da Segunda Guerra Mundial provocados pela Alemanha nazista.
Não lembro de ter visto alguma pesquisa. Mas a prática do dia a dia do jornalismo tem demonstrado que entre os jovens e as pessoas de meia-idade o conhecimento do que significou o nazismo é desconhecido. Os atuais extremistas de direita flertam com os nazistas usando a eficiente tecnologia deles para transmitir suas mensagens políticas para mobilizar as bases. Lembro que, durante os julgamentos dos criminosos de guerra de Nuremberg, os comandantes das tropas aliadas destacaram especialistas em comunicação para entender como o cidadão alemão comum se deixou envolver e ser dominado pela propaganda nazista. Na época, não havia como as redações dos jornais ao redor do mundo saber no que tudo aquilo ia dar. Hoje sabemos. E temos tecnologia, recursos e organização para levar os fatos aos leitores. Mas serão eles suficientes para evitar os acontecimentos da década de 1930?