Muitas das bobagens que nós repórteres publicamos se deve ao fato de escrevermos o texto com o fígado e não com a cabeça. Isso acontece porque encerramos as entrevistas e de imediato redigimos e publicamos a reportagem. Foi sempre assim. E hoje muito mais, devido às novas tecnologias e à concorrência entre nós. Sempre que temos tempo de refletir sobre o que ouvimos, consultar outras fontes e pensar antes de escrever a primeira frase, conseguimos explicar melhor o que aconteceu. Aprendi isso ao longo de 40 anos de correria atrás de histórias e uns 30 e poucos levando “bafo na nunca” dos editores nas redações. Ontem (16/04), esperei se consolidar a situação do agora ex-ministro da Saúde, o médico Luiz Henrique Mandetta. Após a confirmação da sua substituição pelo oncologista Nelson Teich, sentei-me diante do terminal e os meus dedos desfilavam com uma exatidão e rapidez pelas teclas que eu parecia um exímio espadachim envolvido em um duelo. Claro, eu escrevi com o fígado.
O que escrevi, se fosse publicado em um jornal papel, ainda teria alguma utilidade para o leitor, como enrolar peixe. Durante a madrugada reli tudo o que havia escrito e apaguei. Eu sou repórter e meu leitor espera que eu não me comporte como um torcedor assistindo a uma partida de futebol. O que aconteceu vai para a história. Como vai para a história o que começa hoje, o dia seguinte à demissão de Mandetta pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido, RJ). Vamos aos fatos. Bolsonaro demitiu o ex-ministro porque ele defendeu e implantou no país o isolamento social para barrar a expansão do coronavírus. O presidente é contra essa estratégia – há uma enormidade de reportagens publicadas sobre o assunto. Na quarta-feira (15/04), durante um julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF), o ministro Gilmar Mendes disse que Bolsonaro tem o poder de demitir Mandetta. Mas, advertiu o ministro: “Não dispõe do poder para eventualmente exercer uma política pública de caráter genocida”. O ministro não é a primeira pessoa a falar sobre esse assunto. Pesquisadores e médicos têm alertado sobre o perigo. O que isso significa? Se o novo ministro da Saúde falhar no caso do coronavírus, Bolsonaro vai ser acusado de genocida.
O ministro Teich foi prudente e objetivo nas suas primeiras palavras. Disse que não tem intenção de mexer na estratégia do isolamento social. O seu primeiro objetivo é coletar informações e ampliar o número de testes para ter uma ideia precisa do que está acontecendo. Isso significa que ele não vai sair derrubando portas no ministério como fez o ministro da Educação, Abraham Weintraub, uma pessoa que nós repórteres descrevemos como exótica. Teich foi objetivo ao dizer que estava alinhado com o presidente. Aqui começa o problema. Bolsonaro defende terminar o isolamento social. O que, na opinião de muitos especialistas, inclusive da Organização Mundial da Saúde (OMS), pode significar uma tragédia, a exemplo do que aconteceu na Itália e em Nova York, nos Estados Unidos. E também defende o uso indiscriminado do remédio cloroquina para combater o vírus – faltam estudos sobre a droga. A contar de segunda-feira, se dentro de uma semana Teich não levantar o isolamento social e falar bem da cloroquina, ele perde o emprego. O presidente vai para as redes sociais e começa a disparar chumbo grosso contra ele. A Associação Médica do Brasil (AMB) disse que apoia o novo ministro. Isso não significa nada para Bolsonaro.
Entrar no isolamento social foi fácil, porque os brasileiros sentiram medo de serem a próxima vítima do coronavírus, que até a manhã desta sexta-feira (17/4) já havia infectado 2,2 milhões de pessoas nos quatro cantos do mundo, com mais de 148 mil mortes. No Brasil, eram 31 mil casos, com 1,9 mil mortos. As filas de caixões das vítimas, principalmente nos Estados Unidos e na Itália, que aparecem nos noticiários das TVs mantêm muita gente em casa. Sair do isolamento social é uma equação muito complexa e sofisticada, que exige gestores capacitados. Pelo currículo profissional do ministro Teich e o quadro altamente qualificado de funcionários do Ministério da Saúde, as possibilidades de resolver essa equação são boas. Mas o alinhamento de Teich com o presidente pode complicar tudo, porque no modo de pensar de Bolsonaro trata-se de uma operação simples: é abrir as portas do comércio e o povo faz o resto. Se a saída do isolamento for mal feita, pode acontecer uma segunda onda de infecção pelo vírus, têm advertido os especialistas.
Se os governadores sentirem que a situação está saindo do controle vão começar a gritar. E novamente os generais que fazem parte do governo vão ser chamados para mediar a situação. Aqui tem outra novidade. No imaginário popular o fiador do presidente Bolsonaro são as Forças Armadas. Ele não tem base parlamentar na Câmara nem no Senado. Aliás, ele não tem partido. Portanto, se as coisas saírem do controle e o presidente for acusado de estar praticando uma política genocida, a acusação vai respingar nas Forças Armadas. É uma acusação muito séria. Nós repórteres temos que ficar atentos aos bastidores dessa situação. Há tantos fatos soltos no ar que os personagens dessa história, incluindo Bolsonaro e sua equipe do chamado “Gabinete do Ódio”, não sabem o que irá acontecer na próxima hora. É simples assim.
Do modo como se configura a responsabilidade, pelas evidências apontadas pela ciência, está suficientemente claro o intransferível dever presidencial. Artigo do Carlos Wagner define bem a situação.
Obrigado pela leitura, um grande abraço