Se sair uma greve dos caminhoneiros do mesmo calibre da que ocorreu em 2018, que levou a nocaute o ex-presidente da República Michel Temer (MDB-SP) sete meses antes de terminar o seu governo, o que acontecerá com a administração de Jair Bolsonaro (sem partido)? A exemplo de 2018, os sindicalistas estão ameaçando paralisar, e o principal motivo da greve, o preço do óleo diesel, hoje está, em média, mais caro do que na época – há gráficos e matérias disponíveis na internet. A greve de 2018 durou uns 10 dias (21 a 31/05) e derrubou por terra a reação da economia que ensaiava uma recuperação, como hoje.
Esse é o cenário. Vamos conversar sobre ele porque é do interesse do nosso leitor. A conversa é importante para os jovens repórteres que estão nas redações fazendo várias pautas por dia e, portanto, não têm tempo de se atualizar. Antes, eu lembro que nós jornalistas fomos pegos de surpresa pela proporção que atingiu a greve de 2018 e, por consequência, deixamos os nossos leitores na mão. Foram duas semanas de caos: carros parados sem combustível, gás de cozinha racionado, estradas trancadas e longas filas nos postos à espera da chegada do combustível.
O gatilho da greve de 2018 foi acionado em 2016. Na época, o então presidente da Petrobras, engenheiro e administrador Pedro Parente, implantou a política de preços da empresa com revisões mensais com base nas variações dos mercados internacionais, que usam como moeda o dólar americano. Os brasileiros ganham em reais, uma moeda que vale quatro vezes menos que o dólar (12/2019). Em outubro de 2017, a revisão passou a ser diária. Até então a política da empresa durante várias décadas era a de absorver as variações de preços internacionais. Uma espécie de subsídio não declarado ao diesel e ao gás de cozinha que servia para o governo controlar a inflação. Parente acabou com isso de supetão. E desencadeou uma greve que causou bilhões de prejuízos para o país.
Parente se demitiu em julho de 2018, sem ser responsabilizado pela sua falta de tato na implantação da política de preços dos combustíveis. A política implantada por ele segue em vigor ainda hoje. Voltamos aos dias atuais. Na semana passada, Marconi França, do Sindicato dos Caminhoneiros Autônomos, disse que vai acontecer uma greve da categoria no próximo dia 16. Alegou os motivos de sempre: preços dos combustíveis e descumprimento das promessas feitas por Bolsonaro, na época em que era candidato à Presidência da República. Em 2018 houve o mesmo tipo de ameaça e ninguém acreditou. Por que não acreditamos nas ameaças de 2018?
Nós repórteres não acreditamos por vários motivos, principalmente porque a categoria dos caminhoneiros é dividida em vários sindicatos e muito desunida. E a concorrência entre as empresas pelo frete é tremenda. No Brasil, 60% de tudo que é produzido é transportado por via rodoviária. Existem 374 mil caminhoneiros autônomos, 112 mil empresas e 274 cooperativas de transportadores. Aqui uma observação: a maioria, em torno de 60%, dos empresários do setor tem até meia dúzia de caminhões. Na época, eu acreditava que se acontecesse uma greve ela seria curta, tanto que não enchi o tanque do carro e me lasquei. A minha crença era lastreada na experiência profissional: 69 anos de vida, 40 e poucos de repórter e 30 e tantos em redação de jornal. Sempre viajei muito e fiz várias matérias com caminhoneiros. Por exemplo, em 2008: Camicases do Asfalto. Andei pelo Brasil acompanhando um caminhoneiro em um truck – caminhão com dois eixos – levando carga horária, aquela que tem hora marcada para chegar ao destino. Para suportar a jornada de trabalho o caminhoneiro tomava um rebite – anfetamina – de quatro em quatro horas. É uma vida desgraçada, eles morrem do coração aos 50 e poucos anos. Publiquei a reportagem na Zero Hora e os vídeos estão disponíveis na internet. Nesse fim de semana (7 e 8/12) rodei pela BR-386 conversando com os caminhoneiros sobre a história da greve prometida para o dia 16: ninguém sabia de nada.
A grande imprensa informou a ameaça de França em meio a centenas de outras notícias, como fizemos em 2018. A questão não é ameaça do sindicalista. Mas a conjuntura política do momento. Na época, o governo Temer estava sendo moído por denúncias de corrupção feitas pela Operação Lava Jato. Além disso, enfrentava o desgaste da acusação de ter conspirado contra a então presidente Dilma Rousseff (PT), de quem era vice-presidente. A conspiração resultou no impeachment de Dilma, em 2016, e sua substituição por Temer. Em abril de 2018 o candidato do PT à Presidência da República, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT-SP), foi preso por corrupção e lavagem de dinheiro após ter confirmada, pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF 4), em Porto Alegre (RS), a sentença em primeira instância, aplicada pelo então juiz Sergio Moro, da 13ª Vara Federal, em Curitiba (PR). A condenação em segunda instância tirou Lula da corrida presidencial, da qual era líder das pesquisas de intenção de voto. Foi eleito o seu principal opositor, Bolsonaro. Moro abandonou a carreira de juiz para ser ministro da Justiça e Segurança Pública do presidente eleito.
Os cabos eleitorais de Bolsonaro trabalharam muito forte entre os grevistas. Usaram as redes sociais de maneira inteligente e construíram cenas que chamaram a atenção da grande imprensa, como, por exemplo, de um grupo de manifestantes que foi até a porta de um quartel das Forças Armadas pedir que os militares assumissem o poder. Bolsonaro é capitão da reserva do Exército e admirador confesso do Golpe Militar de 1964 (que durou até 1985). Encorajados por tudo isso, os donos das transportadoras entraram em cena e pararam os seus caminhões – há matéria sobre o assunto disponível na internet. Portanto, foi a soma de tudo isso que turbinou a greve de 2018.
Hoje, o que acontece? Do lado do governo: uma desarticulação política interna entre os ministros e a máquina administrativa da União como nunca foi vista antes. Essa desarticulação tem sido capaz de transformar pequenos incidentes em um grande problema. E a boca sem freios do presidente Bolsonaro, que apaga incêndio com gasolina. O seu ministro que é símbolo do comprometimento do governo contra a corrupção, Moro, sendo denunciado pelo site The Intercept Brasil por ter agido de maneira ilegal no seu relacionamento com os procuradores da República na Lava Jato. Do lado da oposição: Lula foi liberado depois de ter cumprido parte da sua sentença e articula a formação de uma frente política para enfrentar o governo nas eleições municipais do próximo ano. O alvo principal de Lula é Moro. Do lado dos caminhoneiros: o preço do seu principal insumo, o combustível, é um dos mais altos da história. A onda de privatização das estradas avançando por todo o país, o que significa novos pedágios. Várias empresas que investiram na formação de suas frotas particulares de caminhões como uma maneira de diminuir custos e ter uma garantia contra as greves de caminhoneiros.
É isso aí. Uma conjuntura política complexa e cheia de combustível. Dentro dessa realidade, nós repórteres temos que ficar muito atentos ao que andam fazendo os empresários pequenos, médios e grandes do setor de transporte de carga. Como em 2018, se eles entrarem nessa história, pode sair uma greve que tem tudo para crescer e parar o país. Aqui, nós temos que ficar atentos ao seguinte: a maioria desses empresários é comprometida com a proposta política de Bolsonaro, eles investiram e fizeram campanha para o atual presidente. Portanto, vão defender o governo publicamente. Mas nos bastidores vão optar por salvar as suas empresas. O que isso significa? As suas entidades de classe vão dizer uma coisa para a imprensa. Mas nos bastidores a história é outra. Temos que ficar atentos ao que acontece entre as quatro paredes.