Sistema contra as cheias de Porto Alegre é velho, mas funcionava. Precisa ser consertado

Recado deixado aos gaúchos pelas últimas enchentes é que o jogo mudou Foto: Reprodução

É real a possibilidade de que a próxima chuva forte alague Porto Alegre. Já aconteceu na chuvarada de mais de 100 milímetros que caiu na cidade na quinta-feira, 23 de maio. Na ocasião, a população já comemorava o recuo das águas do Lago Guaíba, que tinha invadido vários bairros no início de maio, quando aconteceu a terceira grande enchente nos últimos noves meses no Rio Grande do Sul, deixando, no somatório, um saldo de 214 mortes e bilhões de reais em prejuízos na infraestrutura (estradas, pontes, moradias, fábricas e prédios públicos). Por ser a capital do Estado e concentrar as principais estruturas administrativas públicas empresariais gaúchas, além dos maiores hospitais e do Aeroporto Internacional Salgado Filho, a volta de Porto Alegre à normalidade é importante. Ainda mais que a maioria das sedes dessas estruturas administrativas, incluindo o aeroporto e Estação Rodoviária, estão localizadas em áreas que não eram invadidas pelas águas havia 83 anos, desde a grande enchente de 1941, quando o Guaíba subiu 4,76 metros. Graças a um sistema contra as cheias que foi construído no início dos anos 70, depois de outra enchente catastrófica, em 1967, que se estende por 68 quilômetros e é formado por diques, o Muro da Mauá (uma parede de 3 metros de altura com 2,6 quilômetros de extensão e 14 comportas que são fechadas na subida das águas, e protege a área central da cidade) e 23 estações de bombeamento de água. O sistema funciona assim: os diques e as comportas da Mauá mantêm as águas do Guaíba fora da cidade. E as casas de bombeamento mandam as águas das chuvas para o lago pelo esgoto pluvial.

No início de maio, o Guaíba subiu 5,61 metros e colapsou o sistema contra as cheias que, por falta de manutenção, não resistiu ao excesso de chuva. As barrentas águas do Guaíba invadiram o Centro Histórico, vários bairros, a rodoviária e o aeroporto. No final da primeira semana de alagamentos, as águas começaram a recuar do leito de ruas e avenidas. Foi por pouco tempo. A chuvarada do dia 23 inundou novamente essas áreas, além de regiões que até então haviam sido poupadas. O motivo principal foi porque apenas 11 das 23 casas de bombeamento estavam funcionando. Sendo que mais da metade em estado precário. Lembro aos leitores e colegas jornalistas que dentro de três semanas e alguns dias, em 22 de junho, começa o inverno, e em seguida a primavera, as duas estações do ano em que o frio, os ventos e as chuvas são mais abundantes no território gaúcho. Portanto, se as estações de bombeamento e as comportas do Muro da Mauá não estiverem consertadas e funcionando, o que aconteceu na quinta-feira (23) tem chance real de se repetir. O atual foco da discussão nos noticiários e nos gabinetes dos governos (municipal, federal e estadual) tem como prioridade a revitalização, através da atualização técnica de projetos já existentes, a ampliação e a modernização do sistema contra as cheias da Capital. O foco na modernização do sistema é questão de lógica, porque ele é velho e desatualizado. Mas se a estrutura já existente não for consertada imediatamente as águas voltarão a invadir a cidade. É simples assim. A atualização do sistema precisa ser feita. Mas ela leva tempo. E tempo é tudo que não temos agora. O quadro é dramático na Capital. Vários bairros continuam alagados. A Estação Rodoviária e o Salgado Filho não estão funcionando. Entrar e sair de Porto Alegre tornou-se uma operação complicadíssima.

Partes do Centro Histórico ainda estão alagadas. Aqui duas lembranças que considero importantes: boa parte dos moradores dessa parte da cidade são pessoas idosas que vivem sozinhas. Moram ali desde os tempos em que o bairro era o principal endereço das pessoas ricas do Rio Grande do Sul. Já fiz reportagens sobre isso. Muitas vezes esses idosos morrem solitariamente e sua morte só é notada pelos vizinhos quando o cheiro da putrefação invade o andar. O segundo motivo que é a região concentra uma significativa parte do comércio de rua, lojas fora dos shopping. Além do icônico Mercado Público, que funciona ali desde 1864. A maior parte do volume de água que está alagando Porto Alegre ainda é da enchente no início de maio, que atingiu 340 dos 497 municípios gaúchos e matou 163 pessoas, sendo que 72 continuam desaparecidas. A chuva do dia 23 potencializou esse alagamento. Tenho andado pelas ruas e avenidas da cidade e a lembrança que me vem é a que vivi em Huambo, cidade de Angola, durante a Guerra Civil (1975 a 2002). Os motivos da guerra estão disponíveis na internet. Vou falar do que vi. Cheguei à cidade uma semana depois que ela tinha sido bombardeada e palco de combates na área urbana. Nas ruas se encontravam eletrodomésticos, malas de roupas e veículos perfurados por tiros de metralhadoras de grosso calibre. Incluindo uma ambulância atirada em cima de uma casa por uma bomba jogada de um avião. Lembro-me que o chão das ruas estava coberto por cápsulas disparadas pelas armas. Nas ruas e avenidas da Capital gaúcha, o lixo é formado por utensílios domésticos e outros pertences dos moradores destruídos pelas cheias. Já vi muitas ruas e avenidas alagadas durante a minha vida de repórter. Mas nada se compara com a devastação atual, que deixa um recado: a próxima pode ser pior.

Para arrematar a nossa conversa. Como repórteres ficamos atentos ao trabalho dos pesquisadores, às conversas dos governantes dentro dos gabinetes, dos parlamentares entre as quatro paredes das casas legislativas, e ouvimos com a atenção o relato das vítimas das enchentes. Cruzamos as informações recolhidas das conversas e montamos as nossas matérias. É assim que o jornalismo é feito desde que se escrevia os textos molhando uma pena em um tinteiro. O nosso trabalho nos dias atuais foi muito facilitado pelas novas tecnologias de comunicação, que nos dão acesso a uma enormidade de informações. Só uma coisa não mudou em todo esse tempo. O repórter precisa saber ouvir e entender o que as pessoas envolvidas com o problema estão dizendo, ou fazendo. Não é uma tarefa fácil. Por exemplo, por muitos e muitos anos os atingidos pelas enchentes sabiam que, depois que água baixasse, era só voltar para casa, salvar o que fosse possível e tocar a vida. Com a certeza que no próximo ano haveria uma nova cheia e o ritual se repetiria. O recado que as três enchentes nos últimos nove meses deixam para os gaúchos é que o jogo mudou. O próximo ano pode ser a próxima semana. Portanto, é urgente consertar o sistema contra as cheias da Capital.

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