É o que nós repórteres chamamos de estratégia de sobrevivência no tabuleiro dos interesses políticos e econômicos entre dois polos contrários. Há muitos anos os brasileiros usam um dito popular para descrever quem vive essa situação: “acende uma vela pra Deus e outra pro diabo”. O dito define a situação do ministro da Economia, Paulo Guedes, que agora no próximo dia 24 completa 70 anos. Neoliberal de carteirinha, ele defende a privatização das empresas estatais e reformas na administração pública, tributária e nas leis trabalhistas como o caminho para o desenvolvimento do Brasil. O neoliberalismo é o deus do ministro. O diabo é a estatização. Justamente o oposto do que defendem os ministros militares do governo, principalmente os generais que estão ao redor do presidente Jair Bolsonaro (sem partido). Esse é o campo de batalha. Vamos costurar a história.
Antes uma explicação. Ao longo dos meus 40 anos de profissão, 30 e poucos em redação e trabalhando com investigação jornalística em conflitos agrários, migrações e crime organizado, aprendi que sempre é bom explicar ao leitor quando se usa no texto as palavras deus e diabo. No caso aqui, obviamente não há nenhuma conotação religiosa ou de qualquer outro tipo. As usei para facilitar a conversa com os meus colegas repórteres, principalmente os jovens que nas redações precisam sintetizar para os leitores, em duas ou três frases que todos entendam, conteúdos recheados de palavras técnicas. Agora uma observação. De todos os ministros da área econômica que o Brasil já teve, incluindo o período da Ditadura Militar (1964 a 1985), Guedes é menos preparado intelectualmente e o seu currículo fica anos-luz atrás da maioria dos que passaram pelo cargo. Mas é o mais esperto deles. Por ser um operador nato do mercado financeiro. Em uma conversa bem-humorada, um dos generais que rodeiam o presidente disse, elogiando a capacidade de vendedor de Guedes: “Ele vende geladeira para pinguim”.
Voltando à costura da história. Uma das leis de ouro do mercado financeiro é comprar ações com preço baixo e vender quando se valorizaram. Bolsonaro foi a maior aposta que o ministro fez na sua vida profissional. Ele apostou nele quando o presidente era uma ação sem valor no mercado da disputa eleitoral. Considerado um deputado sem expressão política, durante três décadas Bolsonaro pulou de partido em partido na Câmara dos Deputados. Enquanto se notabilizava no cenário nacional por dizer absurdos que acabavam ocupando manchetes dos jornais, tipo o culto à imagem do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, notório torturador de presos políticos. O então deputado pelo Rio de Janeiro era aquele personagem a quem os jornalistas recorriam quando estavam sem assunto, porque sabiam que uma conversa com ele renderia, se não a manchete de capa, pelo menos uma matéria de destaque.
Guedes investiu tempo e paciência em Bolsonaro. Ele foi um doutrinador do então rude deputado. Foi graças à doutrinação do ministro que, na hora que vários fatores se alinharam durante a campanha e lançaram Bolsonaro para o andar de cima das pesquisas eleitorais, o candidato tinha as palavras certas para encantar o empresário nacional e o mercado financeiro, que rezam pela cartilha do neoliberalismo. Dali para frente inverteu-se a ordem das coisas. Geralmente, o presidente é o fiador do ministro. No caso, o ministro é o fiador do presidente. Hoje fica claro que Guedes na época cometeu um erro de avaliação referente às reais intenções das Forças Armadas e das polícias militares do Brasil que se acotovelaram ao redor do então candidato Bolsonaro. Isso ficou evidente durante uma discussão que ele teve em uma das comissões da Câmara dos Deputados, quando foi falar sobre nova Previdência Social.
No meio do bate-boca com os deputados, o ministro os advertiu, de uma maneira sutil, que não deviam contrariar os militares. Bolsonaro é capitão da reserva do Exército e um dos pilares da sua carreira política é a família militar. Durante todo o primeiro ano de governo foi crescendo nas redações a ideia de que as Forças Armadas, que tinham governado o país durante a ditadura militar (1964 a 1985), tinham voltado ao poder pelo voto. Agora no início do ano, com a instalação da emergência sanitária no país pela Covid-19, veio junto uma crise política – há uma abundância de matérias na internet.
O auge da crise foi em junho, quando o presidente ensaiou usar tropas militares para fazer valer a sua autoridade. A sociedade civil reagiu e os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) definiram qual é o papel constitucional das Forças Armadas. Ou seja: os já quase 6 mil militares da ativa e reserva que fazem parte do governo Bolsonaro estão lá representando os seus próprios interesses. E quais são os interesses deles? A resposta para essa pergunta é uma palavra só: emprego.
Sem meias palavras, hoje os militares ao redor do presidente defendem a presença forte do estado na economia. Mais ainda: no mesmo rumo vão os deputados do Centrão que fizeram aliança política com Bolsonaro. No velho estilo toma lá, dá cá. Guedes não é hostil com os militares e muito menos com os deputados. Mas não deixa de mostrar o seu descontentamento com a situação. Como no caso do pedido de demissão de Salim Mattar, secretário de Desestatização, Desinvestimento e Mercado do Ministério da Economia. O ministro lamentou a saída do secretário e a atribuiu à morosidade do processo de venda das estatais. Aqui um parêntesis. Li várias entrevistas de Mattar. A ideia que fiquei é que ele parecia um marciano aterrissando em Brasília. Não entendia de nada. E queria impor o seu modo de fazer as coisas.
O jogo entre Guedes e os militares que rodeiam o presidente só acaba quando o juiz der o apito final. O ministro tem duas ações de preço médio no mercado e uma supervalorizada. As duas médias são a sua aliança informal na defesa do neoliberalismo com os presidentes do Senado, Davi Alcolumbre, e da Câmara, Rodrigo Maia. A mais valorizada é Bolsonaro, que por sinal melhorou nas pesquisas. Mesmo assim, por prudência, continua acendendo uma vela para o diabo. No caso o diabo veste verde.