Uma das grandes escolas do estudo das técnicas de reportagens é a autópsia de um fato gerado em grandes acontecimentos, como é o caso do voto de protesto – marca do primeiro turno das eleições municipais de 2016.
O fato, por vezes, se torna um ícone, que é construído tendo como alicerce informações repetidas nos noticiários até se tornarem um sinônimo do que aconteceu.
Nos meus 40 anos de repórter – a maioria rodando pelas estradas em busca de boas histórias –, aprendi que uma autópsia de um ícone da verdade nos jornais é um importante exercício no aperfeiçoamento da nossa técnica de investigação. Lembre-se do seguinte: uma eleição é uma guerra entre candidatos pelo poder. E, numa guerra, a primeira a ser abatida é a verdade, como descreve Phillip Knightley no seu livro A Primeira Vítima, leitura obrigatória no nosso ramo.
A informação de que havia acontecido o voto de protesto começou a circular pela boca dos comentaristas políticos dos grandes noticiários. Ela foi absorvida e integrada pelos jovens repórteres em suas matérias com naturalidade.
A partir disso, vamos começar a nossa autópsia: quem são os grandes comentaristas políticos das mídias de hoje? São pessoas super atarefadas que escrevem e opinam em várias plataformas da mídia. Portanto, eles têm um escasso tempo para apurar os fatos e resolvem o problema pegando informações com fontes – pessoas ou organizações que defendem os seus interesses – que avaliaram o que aconteceu.
Para se ter uma ideia do que é ser comentarista político, recomendo a leitura do livro Todo Aquele Imenso Mar de Liberdade, sobre o mestre dos comentaristas políticos, Carlos Castello Branco.
A minha conclusão, depois de quebrar a cara várias vezes por tomar por verdade a opinião de comentaristas, é cautela.
Segue o barco. Vamos colocar na mesa da autópsia um fato ocorrido no nosso quintal, comparando o primeiro turno das eleições municipais de Porto Alegre de 2012 com o de 2016.
Houve um aumento de 2,03% no número de eleitores aptos para votar. Gente nova no pedaço? Não só isso. Nos dias atuais, os mortos continuam vivendo por um bom tempo nas redes sociais, tipo Facebook e em registros oficiais, como cartórios eleitorais, bancos e dívidas no comércio.
Fiz uma matéria sobre o assunto e digo que o processo da “morte na burocracia” é longo e complicado. Vamos examinar um dos pilares do voto de protesto: a abstenção. Houve um crescimento de 2012 para 2016 de 19,49%. A ligação feita por analistas foi direta: descontentes com as sacanagens dos políticos, os eleitores protestaram.
O fato é relevante. Daí, pergunto: foi realizada uma pesquisa para explicar o que aconteceu? Ao usar a imagem da sacanagem para explicar tudo, estamos vendendo aos nossos leitores um quadro definitivo que pode não ser totalmente verdadeiro.
Tem mais dois fatos que merecem a atenção do jovem repórter. O crescimento de 56% dos votos nulos de 2012 para 2016 e de 67% dos brancos. A autópsia revela o seguinte: em 2012, foram 4,82% de votos nulos e, em 2016, 8,88%. Os brancos foram 4,57% e 7,01%, respectivamente. Portanto, uma manchete do tipo “Metade dos eleitores de Porto Alegre anularam ou votaram em branco” não é errada, mas é estelionato jornalístico.
E a credibilidade é a carteira de identidade do repórter. Ela é difícil de ser alcançada, mas fácil de ser perdida.
Em tempo: se quiserem ver na íntegra os números que citei, procurem no site do Tribunal Regional Eleitoral do Rio Grande do Sul – www.tre-rs.jus.br. Está tudo lá.