A Folha de São Paulo deu uma “barriga”, publicando o obituário da rainha Elizabeth II, do Reino Unido. A história saiu na segunda-feira (11/04) e repercutiu na mídia mundial, principalmente nos países europeus. Aos 95 anos, a rainha está viva, firme e forte. Vejo no fato uma oportunidade de nós jornalistas discutirmos um assunto sempre presente no nosso meio: o medo de errar. Nos dias atuais é mais fácil corrigir um erro no jornal digital. A Folha fez a correção. É vida que segue. Mas na época em que só existia o jornal impresso a conversa era outra. Vamos aos fatos.
Mas antes vou prestar um esclarecimento aos leitores que não são jornalistas e aos jovens repórteres que fazem a cobertura do dia a dia nas redações. Nos tempos das redações onde se ouvia o som cadenciado das máquinas de escrever e se sentia o ar empestado pela fumaça dos cigarros, alguém, que ninguém sabe quem foi, usou a palavra “barriga” para se referir à publicação de uma matéria contendo uma informação inverídica, que foi parar nas páginas dos jornais por erro do repórter ou do editor. Também se usava a expressão “porta fria” para a mesma situação. Essa, eu sei a origem: nasceu nas batidas policiais, quando um agente derrubava uma porta julgando que o culpado pelo crime estava ali. Quando não encontrava o procurado, gritava: “porta fria”. A expressão migrou das delegacias de polícia para as redações com os repórteres que faziam cobertura dos assuntos criminais. Ela é usada principalmente pelos repórteres que fazem matérias investigativas, talvez porque a maioria deles iniciou na profissão na editoria de polícia. Voltando à nossa conversa. O obituário é um dos conteúdos com maiores índices de leitura nos jornais. Por muitos anos era a primeira coisa que as pessoas liam. Com tempo isso mudou. Mas voltou a ser uma das seções mais lidas durante a pandemia de Covid-19. Geralmente, a publicação da nota sobre o falecimento é gratuita. Os jornais faturam é com as publicações feitas pelas famílias e os anúncios das casas do ramo funerário. Mais ainda: o obituário é uma fonte importante de informações para quem faz pesquisa. Eu já usei várias vezes nos livros que publiquei. Avisos aos jovens repórteres: há uma imensidão de matérias, estudos e outras informações interessantes sobre a história dos obituários.
Logo nos primeiros dias na profissão de repórter, em 1979, tomei conhecimento do tal obituário. Soube então que era um costume das redações, que vinha dos tempos que se escrevia molhando a ponta de uma pena no tinteiro, manter “na gaveta” um obituário pronto de gente importante, como é o caso da rainha do Reino Unido, para ser publicado imediatamente após a morte da pessoa. Os critérios para essas pessoas entrarem na lista das “matérias prontas” eram: ser famoso, ter idade avançada, ser portador de alguma doença grave ou se envolver em algum evento perigoso. A maioria dos falecimentos noticiados nos obituários são de pessoas comuns, cujas famílias enviam o comunicado para o jornal. Lembrei-me de um episódio que considero interessante e por isso vou contar. Em 2010, eu completei 60 anos. E desde que lembro tenho a mania de resumir situações em apenas uma frase curta. Essa habilidade despertou a atenção dos colegas, que começaram a anotar as tais frases. Sempre que eu dizia uma frase nova, um deles avisava: vamos anotar. Um dia estava conversando com um “colega de trincheira”, como chamamos um parceiro de reportagens. E perguntei o que fariam com as frases. Ele respondeu que elas serviriam para orientar o meu obituário. Até hoje damos risadas sempre que lembramos da conversa. Mas as frases estão lá. A respeito da “barriga”, vou contar o seguinte: comecei a trabalhar em jornal pelo setor de circulação, que eram os caras que colocavam o “gibi”, apelido do jornal, nas bancas de revista. Logo que fui trabalhar na redação ainda estavam em atividade vários donos de bancas de jornais dos meus tempos de circulação. Uma vez cometi um erro em uma matéria. Coisa pequena. Mas foi suficiente para ser lembrado pelos donos das bancas. Assim era na época que só existia o jornal impresso.
Lembro de outro episódio em que vivi horas de pavor. Foi no começou dos anos 90. Estava envolvido na cobertura da prisão do chefe de uma quadrilha de roubo de veículos em Foz do Iguaçu, cidade paranaense na chamada Tríplice Fronteira do Brasil, Paraguai e Argentina, uma das regiões mais violentas da América do Sul. No meio da confusão fui informado por um policial que o segundo em comando no bando havia morrido. Fiz a matéria e enviei para o jornal, em Porto Alegre (RS). Horas depois, no jantar, me dei conta que tinha o telefone de um parente da pessoa que a polícia havia informado que tinha morrido. Liguei para saber como tinha sido a morte. Ele não tinha morrido. Inclusive conversei com o “morto”. Liguei para o jornal e pedi para mexer na matéria. Fui informado que ela já tinha baixado – jargão que significa que o texto já foi enviado para a gráfica do jornal, para a impressão. Foram minutos intermináveis de negociação para convencer os editores a mexer na matéria. Para se livrarem de mim disseram que iriam corrigir o texto. Mas fiquei com o pé atrás. Durante a madrugada, liguei para um amigo e pedi que ele lesse a minha matéria publicada na primeira edição do jornal, que circulava no interior gaúcho e nos outros estados. Mais tarde, era impressa uma segunda edição, com informações mais atualizadas, que circulava na Região Metropolitana de Porto Alegre. A correção que eu solicitei havia sido feita.
Em 30 e poucos anos de redação essa não foi a única fez que peguei um erro meu aos 46 minutos do segundo tempo. Por um lado, a situação melhorou na era digital. Porque podemos mexer na matéria online. Mas o medo de errar não desapareceu. Muito pelo contrário. Por quê? A rapidez como as coisas acontecem nos dias atuais diminuiu o tempo que o repórter tem para apurar os fatos. O que nos torna mais vulneráveis a cometer erros. O medo de errar não pode nos impedir de avançar na investigação da matéria e muito menos de ser audacioso e ir buscar as histórias que parecem impossíveis de serem desenroladas. Porque o leitor entende quando cometemos um erro e o reconhecemos e o corrigimos, como fez a Folha. O erro não é um dolo. O dolo é outra coisa, um caso de polícia.