A luta pela sobrevivência do bom jornalismo está tão engalfinhada que perdemos o senso do humor. Explico: na semana passada, o presidente da República Jair Bolsonaro (PSL-RJ) dava uma volta de moto pela área do Palácio da Alvorada, em Brasília (DF), quando parou para falar com um grupo de apoiadores. Foi quando um ciclista que passava pelo local se aproximou e perguntou a ele: “E o Queiroz?”. “Tá com a sua mãe”, foi a resposta presidencial.
Fabrício Queiroz foi assessor do então deputado estadual do Rio de Janeiro Flávio Bolsonaro, filho do presidente e hoje senador. Queiroz é suspeito de recolher parte dos salários dos funcionários do gabinete do Flávio. Com pequenas variações, os grandes jornais trataram a notícia de maneira fria. Mesmo os sites e blogs preferiram dar ao assunto uma contextualizado pelo lado política.
Pela maneira como o assunto do ciclista foi noticiado, desperdiçou-se uma oportunidade de fazer uma matéria interessante para nossos leitores. Mesmo durante os anos sombrios da ditadura militar (1964 a 1985), um assunto desses merecia um tratamento melhor, principalmente no Pasquim (jornal semanal alternativo publicado de 1969 até 1991). Certa vez, em 1978, um repórter perguntou ao general João Figueiredo, que recém havia sido indicado pelo regime militar para presidir o Brasil (de 1979 a 1985), se ele gostava do cheiro do povo. Figueiredo comparou: “O cheirinho do cavalo é melhor”. Apesar da rígida censura que pesava sobre a imprensa na época, a resposta foi manchete em todos os jornais e um prato cheio para os programas de humor.
Voltando ao ciclista. Não sei se algum colega repórter sabe e publicou (não encontrei nos conteúdos dos noticiários que li, escutei e vi) o nome do ciclista que teve a mãe ofendida por Bolsonaro. A resposta interessa ao nosso leitor porque não é todo mundo que tem a mãe xingada pelo presidente da República. Será que ele é árbitro de futebol? No Brasil, como se sabe, a única mãe que ninguém respeita é a do juiz de futebol. É errado. Mas faz parte da nossa cultura. As demais mães todos respeitam. Sobre futebol, lembro-me dos meus tempos de guri (como os gaúchos chamam os meninos). Sou filho de uma família de colonos alemães pobres do interior de Santa Cruz do Sul (RS), no Vale do Rio Pardo. Morei uns tempos em uma cidade próxima, Rio Pardo. E depois passei toda a minha adolescência em Encruzilhada do Sul, na época um pequeno município da região sul do Estado. Morava em um bairro pobre chamado Lava Pés, onde ficavam as casas de prostituição da cidade. Eu e meus amigos não éramos discriminados por sermos pobres. Mas pelos nossos laços familiares no Lava Pés. A discriminação terminava na hora do futebol, a minha escalação era garantida porque era o dono de bola de couro número cinco. A disputa dos times do Lava Pés com os centro da cidade era acirrada. Mas a partida só acabava em pancadaria se alguém ofendesse a mãe de outro. Não interessava se a mãe ofendida fosse de alguém do Lava Pés ou do centro da cidade. “Mãe é sagrada”, pregava o padre Nicolau (foi pároco por 53 anos) nas missas de domingo.
Eu tenho 69 anos, 40 de repórter e monte de quilômetros rodados pelos rincões do Brasil em busca de boas histórias para contar. Aprendi que existem coisas que são muito caras para o nosso leitor e que não podemos deixar passar batido como se não fosse nada. Muitos dos meus livros nasceram da pesquisa do significado de uma palavra da cultura popular. Listo “Monges Barbudos & O Massacre do Fundão” (1981), em parceria com o repórter André Pereira, “Os Infiltrados” (2010), com os repórteres Carlos Etchichury, Humberto Trezzi e Nilson Mariano, e “De Pai Para Filho na Migração Gaúcha” (2019). Falo aos meus jovens colegas repórteres que estão na correria enlouquecida das redações: a fala de Bolsonaro “tá na casa da tua mãe” é uma boa oportunidade de contar uma história interessante para o nosso leitor sem ranço. O presidente é conhecido como um homem que não tem freios na língua. Mas mãe é sagrada.