A história esquecida do cacique Xangrê

A história do cacique Xangrê foi varrida para baixo do tapete pelos governantes. Foto: Ricardo Chaves.

O que um Fusca com cinco índios caingangues dentro, correndo pelas estradas de chão batido da Reserva Indígena de Nonoai, em uma quente manhã de maio de 1978, tem a ver com o surgimento do agronegócio no Meio-Oeste do Brasil, um dos pilares da economia nacional? Tudo. Esse elo da história brasileira não faz parte dos livros escolares, porque os fatos foram varridos para baixo do tapete pelo governo da época e pelos que se seguiram. Isso aconteceu porque o personagem principal desse elo da história é um índio: o cacique caingangue Nelson Xangrê. E o Brasil pertence a imensa galeria dos países em que minorias não têm lugar na história oficial. Nos dias atuais, doente, abandonado e com medo de ser morto, o cacique vive escondido nos matos, entre os municípios de Iraí e Nonoai, duas cidades agrícolas nas barrancas do Rio Uruguai, no norte do Rio Grande do Sul.

Xangrê é uma peça importante na construção da história do agronegócio brasileiro. Antes de começar a puxar de baixo do tapete os fatos desse elo da história, eu quero relatar aos meus colegas, principalmente aos que estão começando na carreira de jornalista, uma lição sobre a nossa função que aprendi com um colega francês, na África, na ocasião em que estava fazendo uma série de reportagens sobre a Guerra Civil de Angola. A conversa foi em uma noite quente, num boteco, em Luanda, capital angolana, em 1993, algumas horas antes de embarcarmos em um avião da ONU para Huambo, cidade onde a guerrilha que lutava contra o governo tinha o seu quartel-general. Em linhas gerais, o francês, um veterano na cobertura de conflitos armados ao redor do mundo, disse-me o seguinte: “historiador escreve a história relatando os fatos encontrados em documentos, publicações e depoimentos. O repórter reescreve a história descobrindo fatos que foram varridos para baixo do tapete pelos governos”.

Recomeçando a contar a história. Entre os cinco índios que estavam dentro do Fusca, um deles era Amando Vergueira, braço direito de Xangrê. Aos 75 anos, em 2014, ele me contou que eles estavam indo para Santo Ângelo para falar com o então general do Exército José Eduardo Lopes Teixeira para conseguir uma autorização para expulsar as 1,5 mil famílias de agricultores que viviam como intrusas na reserva. Na época, o Brasil era governado pelos militares, que deram um Golpe de Estado e assumiram o governo em 1964 e ficaram até 1985. “O general autorizou a expulsão”, me disse Vergueira. Durante duas semanas, caingangues e colonos se enfrentaram na reserva – há um vasto e detalhado material sobre o caso disponível na internet. No final, os colonos foram expulsos e montaram 30 acampamentos na beira das estradas da região. Um desses acampamentos foi o da Encruzilhada Natalino, na época uma estrada de chão batido entre Passo Fundo e Ronda Alta. Na Natalino, houve um enfrentamento entre o governo federal e os acampados. Os colonos queriam ser assentados no Rio Grande do Sul. E o governo oferecia assentamentos nas novas fronteiras agrícolas, no Meio-Oeste. Esse enfrentamento resultou na migração de centenas de famílias de agricultores para Mato Grosso e estados vizinhos. Cidades como Lucas do Rio Verde (MT) foram povoadas por esses colonos.

A história da migração dos gaúchos para as novas fronteiras agrícolas é dividida em duas: uma antes e outra depois do conflito de Nonoai. Foi graças a esse conflito que o contingente de migrantes foi reforçado. Sobre esse conflito existem livros publicados, dissertações de mestrado e teses de doutorado nas universidades e muitas testemunhas vivas. Mas, apesar do volume de informações que existe circulando sobre o conflito de Nonoaí, ele não foi incorporado à história do país contada nas escolas. É como se Xangrê não tivesse existido.

6 thoughts on “A história esquecida do cacique Xangrê

  1. Interessante matéria, mas, fico aqui pensando que faltou uma abordagem mais aprofundada sobre a trajetória do líder indígena.

    1. Em 1986, eu em parceria com os repórteres André Pereira e Humberto Andreatta publicamos o livro A Guerra dos Bugres onde falamos nele. Nos anos 90, em duas oportunidades o entrevistei e publiquei reportagens na Zero Hora. Li alguns trabalhos (teses de mestrado e dourado) sobre ele. Mas tu tem razão: falta um trabalho mais consistente e permanente sobre o ele.

  2. Importantíssimo seu trabalho a respeito do líder mas o título do trabalho “a guerra dos…..soa meio pejorativamente racista e preconceituoso e ofensivo ate pq o real significado tenho conhecimento.
    Vergonhosa essa
    Palavra

    1. Tudo bem? Andreia existe uma grande discussão entre os repórteres velhos, como sou. É sobre o uso ou não de palavras que se enraizaram na cultura popular. A maioria delas tiveram a sua origem em fatos politicamente errados, como massacres e outras coisas. Portanto são pejorativas. Bugre é uma delas. A palavra foi cunhada pelos imigrantes no Brasil como sinônimo “gente sem direito”. Nos Estados Unidos os colonizadores cunharam a palavra “pele vermelha”, o significado é o mesmo. A discussão entre nós velhos repórteres é a seguinte: tem uma linha de pensamento que acredita que temos usar essas palavras para explicar aos leitores o crime que praticaram contra os índios. Há uma outra linha que diz que é pejorativo se usar a palavra. Sempre defendi que se precisa usar a palavra bugre para explicar a população o significado dela. Uma maneira de não deixar esquecer o massacre das tribos indígenas pelos colonizadores. O tempo aliado com o conhecimento se encarregou de trazer a verdade. Te lembro o seguinte: o assassinato do desempregado americano George Floyde por um policial branco fez florescer no mundo um movimento para retirar os monumentos de escravagistas erguidos nas praças e venerados como heróis. Ainda bem.

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