A democracia brasileira não é ameaçada pela disputa política. Mas pelo jornalismo mal feito

Episódios como as manifestações de 2013 (foto) e a disputa política entre os partidos pelo poder nas eleições de 2018 são provas que a democracia brasileira caminha com as próprias pernas. Foto: arquivo pessoal

Na descrição do atual cenário da disputa política do Brasil, nos conteúdos dos noticiários e das análises feitas pelos comentaristas políticos, três palavras têm brotado com abundância: ameaça à democracia brasileira. Para as pessoas que nasceram nos anos 50, essas palavras causam arrepios, porque elas viveram todo o pesadelo que foi o Regime Militar (1964 a 1985). Eu tenho 68 anos, e a minha geração de repórteres, usando um dito popular para descrever a situação, comeu o pão que o diabo amassou com a falta de liberdade de imprensa. Para a atual geração de repórteres, isso é assunto de museu.

E o que essas palavras significam para o nosso leitor? Nós precisamos esclarecer melhor essa história, porque é com as nossas informações que ele organiza a estratégia de vida da sua família, principalmente dos filhos. É dentro desse foco que vou conversar com os meus colegas, os repórteres calejados e com os jovens. E vou usar uma ferramenta de trabalho com que esculpi os ensinamentos que aprendi, exercendo a profissão de repórter na cobertura de conflitos sociais, tipo disputa de terras, e de reportagens investigativas, sobre crime organizado. Para descrever um conflito, é fundamental que se informe ao leitor que o limite da disputa é a lei. No caso, são as leis que regulamentam a disputa politica. Forçar o limite dessa legislação faz parte do jogo. E como isso é feito? O mais comum é o blefe. E o mais eficiente são as manifestações de massa, como foi o caso de 2013, que ficou conhecido como “Não foi pelos 20 centavos” – há um vasto material disponível na internet. Transgredir a lei não faz parte do jogo, é crime. Como também é crime usar a lei como instrumento político para tirar da disputa o seu adversário. Como disse Nicolau Maquiavel (pensador italiano, 1469 a 1527): “Aos amigos os favores, aos inimigos a lei.”

Vamos conversar citando fatos recentes e concretos. Há um grupo de seis manifestantes de movimentos populares que começou na semana passada uma greve de fome, com manifestações na frente do Supremo Tribunal Federal (STF), lutando pela libertação do ex-presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva (PT – SP) – condenando em segunda instância no Tribunal Regional Federal  da 4ª Região (TRF4) a cumprir uma pena de 12 anos e um mês pelo envolvimento no recebimento de propina. A única vez em que o assunto saiu nos noticiários foi quando o grupo tentou fazer a greve no STF, e houve uma escaramuça com os seguranças. No restante, o assunto não existe para nós. Ignorar o assunto já é um absurdo, porque estamos omitindo informações do nosso leitor. Mas esquecer que, entre os manifestantes, está o frei franciscano Sérgio Görgen, 60 anos, também é um absurdo. A notoriedade do frei não é por ter sido deputado estadual no Rio Grande do Sul pelo PT (legislatura de 2003 a 2007, e não concorreu a reeleição). Mas pela sua vinculação com as lutas sociais agrárias e com os movimentos sociais ao redor do mundo, principalmente na Europa. Conheci o frei em 1979, no interior de Não Me Toque, pequena cidade agrícola  gaúcha, fazendo agitação entre os jovens agricultores. Nos anos 80, ele participou de todas as grandes ocupações feitas pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) no Rio Grande do Sul, com destaque para a que aconteceu em 1985, na Fazenda Santa Elmira, em Salto do Jacuí. Lá, 1,5 mil sem terra lutaram por mais de três horas com as tropas da Brigada Militar (BM). O frei teve o rosto deformado por uma coronhada de fuzil. Em qualquer canto do mundo civilizado, o frei é notícia. Aqui no Brasil, nos decidimos que ele não é notícia. Com que direito tomamos essa decisão de omitir isso dos nossos leitores?

Ficando ainda no pé do ex-presidente Lula. No mês passado, o desembargador Rogério Favreto, em um de seus plantões, deu habeas corpus para o ex-presidente. Houve uma queda de braço entre Favreto, o seu colega João Pedro Gebran Neto (relator da Lava Jato no TRF4) e o juiz de 1ª instância Sérgio Moro. Favreto perdeu, e a questão foi decidida pelo presidente do TRF4, Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz. Lula continua preso. Mas nós escrevemos nos nossos noticiários que a disputa entre os juízes enfraquecia a Justiça. Conversa fiada. O dia em que o Poder Judiciário tiver uma única opinião, nós estamos ferrados. O que aconteceu faz parte do jogo. Em qualquer canto do mundo, juiz tem lado.

A questão do candidato a presidente da República Jair Bolsonaro (PSL-RJ). Capitão do Exército, ele fez carreira política (deputado estadual e federal) dizendo desaforos para a imprensa e exaltando os golpistas de 1964. Nas últimas duas entrevistas que ele deu, para o programa  Roda Viva, da TV Cultura de São Paulo, e para a Globo News, ele foi debochado e desaforado com os entrevistadores. O trabalho do candidato foi facilitado, porque os entrevistadores  tentaram pegá-lo pelos absurdos que ele fala. E tendo como pano de fundo que a eleição dele é uma ameaça para a democracia. O trabalho de casa que os entrevistadores deveriam ter feito era saber se as organizações envolvidas na campanha dele têm capacidade e logística para detonar a democracia. Sem esse conhecimento, não temos como separar o blefe da realidade. Ou seja: deixamos o nosso leitor na mão.

O que relatei é um fato. Basta ver os conteúdos dos noticiários. Nós, repórteres, não podemos ficar repetindo que qualquer espirro mais forte coloca em risco a democracia brasileira. Ela já caminha com as próprias pernas e não precisa de tutor. Temos  que avaliar se o que está acontecendo faz parte do jogo ou se é coisa de criminoso. O nosso leitor precisa de informações corretas, que não são fáceis de conseguir. Mas são essenciais para fazermos um bom jornalismo. É simples assim.

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