A história de um flagelado, Jesus Cristo e os 2, 7 mil mortos diários pela Covid-19

A política genocida do governo Bolsonaro vai acabar no banco dos réus dos tribunais internacionais. Foto: reprodução

Poucos dias depois de começar a trabalhar em redação de jornal conheci um velho repórter a quem todos chamavam de “Patrimônio”, porque ele trabalhava há tanto tempo ali que já haviam colocado nele aquelas plaquinhas que identificam os bens da empresa. Caminhava com passos curtos e lentos. Tinha uma língua muito afiada e fumava como uma chaminé. Logo no meu primeiro ano de redação aconteceu uma grande enchente no Sul do Brasil. Depois de um longo dia de trabalho, molhado até os ossos, voltei para a redação. Sentei-me para “bater” a matéria – dizia-se bater porque era preciso praticamente espancar as pesadas teclas das antigas máquinas de escrever – quando ele passou pela minha mesa e me perguntou: “Wagner, tu viu Jesus Cristo?”. Não lembro o que respondi. Mas devo ter pensando uma coisa e falado outra bem leve. Afinal, eu era um “foca”, e ele o cara que fazia o dono do jornal ir até a redação e sentar-se na sua mesa para conversar. Mas lembro da historinha que ele me contou em seguida: “Durante uma enchente havia um homem muito devoto a Jesus Cristo que se refugiou no telhado da casa enquanto a água subia. Pediu para Jesus vir salvá-lo. Veio um homem em um barco e se ofereceu para levá-lo. Ele recusou porque estava esperando Jesus. Veio o socorro em um helicóptero, ele também recusou. Acabou se afogando, e quando chegou ao céu e encontrou Cristo, perguntou-lhe porque ele não tinha ido salvá-lo. Jesus respondeu: apareci duas vezes lá, uma de barco e outra de helicóptero, e tu recusaste.” O episódio da troca de ministro da Saúde me lembrou dessa historinha, que depois descobri ser muito popular no interior do Rio Grande do Sul. Vamos aos fatos.

No fim de semana, eu estava meio adormecido em sofá perto da churrasqueira, depois de comer uma costela e tomar umas taças de vinho, quando ouvi pela primeira vez o nome da médica e professora Ludhmila Hajjar criar corpo para substituir o ministro da Saúde, o general da ativa do Exército Eduardo Pazuello. Quando descobri que ela é dona de um currículo profissional respeitável, contra o tratamento preventivo com cloroquina, a favor do isolamento social e de outras práticas recomendadas pela Organização Mundial da Saúde (OMS) no combate à Covid-19, eu pensei: tem alguma coisa errada. Ela é do time do Mandetta, o inimigo público número um de Bolsonaro. O médico Luiz Henrique Mandetta foi primeiro ministro da Saúde do atual governo. Por seguir as orientações da OMS foi boicotado e demitido pelo presidente. Seu sucessor, o médico Nelson Teich, se demitiu antes de fechar um mês no cargo também por não concordar com a política do governo sobre a pandemia. Foi substituído por Pazuello. Liguei para dois colegas em Brasília (DF) para saber qual era a jogada. Recebi como resposta: “É atrás do que todos nós estamos correndo.” No anoitecer de domingo (14/03) circulou com intensidade na imprensa a notícia de que o padrinho de Hajjar era o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, homem de confiança de Bolsonaro e líder do Centrão, que recentemente tornou-se a base parlamentar do governo.

À medida que o nome da médica tornava-se forte para ocupar o cargo, ela era atacada pelas milícias eletrônicas bolsonaristas ligadas ao Gabinete do Ódio, que é formado por apoiadores do presidente, entre eles os seus três filhos parlamentares: Carlos, vereador do Rio, Flávio, senador do Rio de Janeiro, e Eduardo, deputado federal por São Paulo. Ninguém no governo age sem o consentimento do presidente, foi o que aprendemos nesses mais de dois anos de mandato. Nem mesmo o Gabinete do Ódio. Sendo a médica afilhada política de Lira, que tem na sua gaveta mais de 60 pedidos de impeachment contra o presidente, por que foi detonada pelas milícias digitais? Depois de conversar durante três horas com Bolsonaro, ela desistiu do cargo e deu uma entrevista à Globo News chutando o balde – disponível na internet. Lira “matou no peito” o desaforo que fizeram para sua afilhada e ficou quieto. Comentei com os colegas que não entendia o silêncio do deputado. Muito menos a jogada de Bolsonaro. Afinal, Lira é líder do Centrão, tem um monte de pedido de impeachment contra o presidente na gaveta. Na segunda-feira (16/03), Bolsonaro confirmou no cargo o médico Marcelo Queiroga, presidente da Sociedade Brasileira de Cardiologia. Não com tanta ênfase como Hajjar, mas o cardiologista também tinha falado em público contra a cloroquina e defendido o uso de máscara e o isolamento social. Pensei: será que Bolsonaro trocou seis por meia dúzia?

Só vim a entender a situação quando os jornais colocaram em suas manchetes a declaração do novo ministro da Saúde. Disse ele: “Política é do governo Bolsonaro, não do ministro da Saúde”. Acrescentando, nos noticiários seguintes, que veio para continuar o trabalho de Pazuello no Ministério da Saúde. Hamilton Mourão, vice-presidente da República, disse que o “presidente é responsável por tudo que aconteça ou deixe de acontecer. Essa é a realidade”. Qual foi o trabalho de Pazuello? Ele transformou em política de governo o negacionismo de Bolsonaro em relação ao poder de contágio e a letalidade do vírus. Isso resultou em uma política genocida responsável pela morte por asfixia por falta de oxigênio de pacientes infectados pelo vírus nos hospitais de Manaus (AM) e no interior do Pará. Em 25 dos 27 estados do Brasil os sistemas de saúde pública e privado colapsaram e centenas de pacientes estão morrendo por falta de UTIs. Estão morrendo 2,7 mil pessoas por dia, uma coisa nunca vista antes. No total já somam mais de 270 mil mortes. A vacinação, que é a solução do problema, está acontecendo a conta-gotas.

A disputa entre Bolsonaro e o ex-presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva (PT-SP), ou seja lá qual for o adversário do presidente nas eleições de 2022, levará a política genocida do governo em relação à Covid-19 para o banco dos réus da Corte Internacional de Justiça da Organização das Nações Unidas. Os deputados do Centrão estão apoiando o governo pelos cargos e as emendas parlamentares. Não querem se envolver com a política genocida. E aqui que se encaixa Arthur Lira. Ele indicou a médica Hajjar para desmontar os arranjos feitos por Pazuello na estrutura da Saúde e montar um sistema realmente preocupado no combate sério à pandemia. Isso enfraqueceria a política genocida e seria uma demonstração internacional de que o governo estava tentando consertar as coisas. Bolsonaro não concordou com essa estratégia e está se lixando para o que a comunidade internacional pensa da política genocida do seu governo referente à pandemia. Daí as palavras do novo ministro da Saúde de que a política é do governo. Como deixou claro o vice-presidente. Trocando em miúdos. O presidente Bolsonaro assumiu publicamente que é o único responsável pela condução da política de combate à Covid-19. O presidente está só. Como aquele personagem da história que usei para abrir o texto. Ele está em cima de um telhado no meio da inundação esperando Jesus Cristo vir salvá-lo. Enquanto espera, a água sobe.

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