A imprensa, a entrevista de Sarney e a luta pela anistia dos bolsonaristas golpistas

A jovem e sólida democracia brasileira resistiu ao ataque dos aventureiros Foto: EBC

Sou um repórter estradeiro, 75 anos, 40 e tantos na lida. Nas últimas décadas tenho andando pelos sertões do Brasil e nas fronteiras com os países vizinhos fazendo reportagens sobre conflitos agrários, crime organizado e migrações. Aprendi que, para não escrever bobagens, existe um protocolo que precisa ser seguido. O primeiro item é fazer um diagnóstico da situação que está na frente dos olhos. Depois, se questionar se viu tudo e consegue dizer quem é quem no imbróglio. Por último, escrever a matéria. Contei essa história para entrar pisando macio na nossa conversa. Li, ouvi e assisti à entrevista do ex-presidente da República José Sarney, 94 anos, falando sobre os 40 anos da redemocratização do Brasil. Em 1985, foram eleitos de maneira indireta, por um colégio eleitoral, Tancredo Neves (1910–1985) para presidente da República e Sarney, para vice. Tancredo não chegou a assumir. Na noite anterior à posse, foi levado às pressas a um hospital de Brasília com fortes dores abdominais. Submetido a uma cirurgia, não resistiu e morreu dias depois. Sarney, que havia assumido o cargo interinamente, foi confirmado como presidente, conduzindo o país de 1985 a 1990, numa das mais conturbadas travessias políticas já vistas no Brasil. Em 1964, apoiado pelos Estados Unidos e pela direita brasileira, as Forças Armadas haviam dado um golpe de estado, permanecendo no poder até 1985 e deixando como herança uma hiperinflação e muita desordem social. Em 1987, foi instalada a Assembleia Nacional Constituinte, presidida pelo deputado Ulysses Guimarães (1916–1992), que em 1988 publicou a atual Constituição do Brasil. Há farto material sobre o assunto na internet.

Acompanhei toda essa história. Comecei a trabalhar em redação em 1979. Em 1985, quando os militares deixaram o poder, descongelaram-se as lutas sociais que haviam sido reprimidas com a instalação da ditadura. A luta pela reforma agrária explodiu em vários cantos do país. A minha vida profissional era pular de conflito em conflito agrário pelos rincões brasileiros. A liberdade de imprensa assegurada pela Constituição foi como um sopro profundo de ar nas redações. Poder escrever sem medir as palavras ou se preocupar em ter que dar explicações para a Polícia Federal (PF) foi uma maravilha. Três décadas e três anos se passaram. Em 2018, foi eleito presidente Jair Bolsonaro (PL), 69 anos. Capitão reformado do Exército, ele fez a sua carreira política defendendo a memória dos golpistas de 1964 e os torturadores dos presos políticos, como o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra (1931–2015), que usava o codinome Tibiriçá. Bolsonaro assumiu a Presidência prometendo dar um golpe militar. Eu não acreditava e o tratava como um bravateiro. Vejam bem. Durante três décadas, ele foi vereador do Rio de Janeiro e deputado federal do baixo clero, como a imprensa apelidou os parlamentares que nunca apresentam um projeto na Câmara. Por ter três filhos parlamentares, Carlos, Eduardo e Flávio, e uma vida econômica folgada, o meu diagnóstico foi de que Bolsonaro estava falando sobre golpe “da boca para fora”. Afinal, nestes anos todos, o Brasil se modernizou, as instituições se fortaleceram e a nossa democracia, apesar de jovem se comparada à dos Estados Unidos, que tem 250 anos, tinha musculatura para resistir a aventuras. Nem mesmo no seu primeiro ano de mandato, em 2019, quando colocou na administração federal 6 mil militares (ativa, reserva e reformados) de várias patentes, entre elas a de general, acreditei que haveria uma tentativa de golpe.

Lembram que citei no início da nossa conversa que existe um protocolo para não se escrever bobagens, que inclui realizar um diagnóstico correto da situação. Pois errei no diagnóstico sobre Bolsonaro. E só fui me dar conta que havia errado meses depois, quando o então presidente assinou um decreto autorizando que os salários dos militares no governo furassem o teto dos funcionários públicos federais, na época de R$ 39 mil. Até então, somando o soldo que os militares recebiam das Forças Armadas com o salário da função que desempenhavam no governo, esse valor não podia ultrapassar esse limite. O decreto permitiu que recebem integralmente os dois salários, mesmo que superasse o teto. Na ocasião, lembro de ter comentando com um colega: “Eles vão tentar o golpe”. Não por ideologia. Mas pelo dinheiro. Os detalhes da tentativa de golpe podem serem encontrados nas 882 páginas do relatório final da Polícia Federal (PF) e nas 272 folhas da denúncia contra os golpistas feitas pela Procuradoria-Geral da República (PGR) ao Supremo Tribunal Federal (STF). A tentativa de golpe consistiu em uma série de atos planejados ou executados pelos bolsonaristas, incluindo o assassinato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, 79 anos, do vice, Geraldo Alckmin (PSB), 72 anos, e do então presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Alexandre de Moraes, 56 anos. O clímax desta história aconteceu em 8 de janeiro de 2023, quando bolsonaristas invadiram e destruíram tudo que encontraram pela frente no Palácio do Planalto, no Congresso e no Supremo Tribunal Federal (STF), em Brasília (DF). Por conta dos atos golpistas, 2 mil pessoas foram investigadas, 371 já foram julgadas e condenadas a penas de mais de 17 anos de cadeia, 527 fizeram acordo com a Justiça e o restante responde a processos. O ex-presidente foi considerado inelegível até 2030 pelo TSE. E no próximo dia 25 o STF deverá responder se aceita ou não a denúncia da PGR contra o ex-presidente e mais 33 pessoas, incluindo o general de quatro estrelas da reserva Walter Braga Netto, 68 anos, que foi candidato a vice-presidente na chapa de Bolsonaro em 2022, quando perdeu a reeleição para Lula. Se o STF aceitar a denúncia, o ex-presidente e as outras 33 pessoas se tornarão réus.

Para arrematar a nossa conversa. No domingo (16/03), Bolsonaro articulou e realizou uma manifestação com os seus apoiadores em Copacabana, no Rio Janeiro, pedindo anistia para os presos pelo 8 de janeiro de 2023. Há um projeto tramitando no Congresso. Inicialmente, havia sido prevista a presença de 1 milhão de pessoas no evento. Pelo cálculo das autoridades, compareceram 18,3 mil pessoas. O evento foi financiado pelo pastor Silas Malafaia, 66 anos, da igreja Assembleia de Deus Vitória em Cristo. O pastor chamou o ministro Moraes de criminoso. Há outra manifestação pela anistia prevista pelo ex-presidente para acontecer em São Paulo. Caso o STF aceite a denúncia da PGR contra Bolsonaro e seus aliados, a tramitação do projeto da anistia deverá ficar em banho-maria no Congresso. O fato é o seguinte. Não é fácil convencer a opinião pública que não foi uma tentativa de golpe o que foi mostrado pelas imagens dos bolsonaristas quebrando tudo em Brasília. Na disputa política não acredito em coincidências. Portanto, o fato da manifestação do Rio de Janeiro ter sido marcada para o dia seguinte à saída do poder dos militares que deram o golpe em 1964 traz uma mensagem de que os golpistas ainda estão na estrada.

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