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Há alguns anos, brotou uma conversa entre os repórteres que trabalham com reportagens investigativas que a cada dia fica mais encorpada. Ela diz que vivemos numa época em que não existem mais segredos nem “entre quatro paredes”, o que era uma espécie de símbolo do mais seguro dos lugares. Vou explicar. A existência de uma imagem ou uma gravação de voz do fato que estamos denunciando é fundamental para qualificar a reportagem. O que era raro na era analógica. Nos dias atuais, temos uma abundância de imagens, sons e outros detalhes de um acontecimento porque sempre há por perto uma câmera de segurança, alguém com um celular na mão ou um drone sobrevoando o local. Lembrei-me disso por conta dos vídeos dos depoimentos da delação premiada do tenente-coronel Mauro Cid, 45 anos, ex-ajudante de ordens do ex-presidente da República Jair Bolsonaro (PL), 69 anos. Bolsonaro e outras 33 pessoas (24 militares da ativa, reserva e reformados) são acusados de planejar um golpe de estado com o objetivo de impedir a posse do então presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva (PT), 79 anos, e do seu vice, Geraldo Alckmin (PSB), 72 anos. O plano incluía assassinar Lula, Alckmin e o presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Alexandre de Moraes, 56 anos. Uma coisa foi saber dos detalhes da denúncia de Cid lendo os jornais ou assistindo aos relatos dos apresentadores dos noticiários de rádio e TV. Outra coisa é apertar uma tecla no celular ou no computador e ver o vídeo do tenente-coronel depondo no Supremo Tribunal Federal (STF).
Nos noticiários de quinta-feira (20/02), o advogado de Bolsonaro, Celso Vilardi, disse que iria pedir ao STF a anulação do acordo de delação premiada do tenente-coronel. Além da delação, existe uma investigação feita pela Polícia Federal (PF) sobre a tentativa de golpe que rendeu um relatório de 884 páginas, entregue no início de novembro do ano passado ao STF, que, dias depois, o enviou para a Procuradoria-Geral da República (PGR). Na terça-feira (18/02) o procurador-geral, Paulo Gonet, 63 anos, fez uma denúncia (272 páginas) ao STF contra Bolsonaro e mais 33 pessoas por formação de uma organização criminosa com a finalidade de dar um golpe de estado. Aqui é o seguinte. Os jornalistas envolvidos na cobertura deste episódio precisam se dar conta e avisar os seus leitores que, ao contrário do que acontecia na era analógica, hoje podem serem encontrados no relatório de 884 páginas da PF e nas 272 páginas da denúncia feita pela PGR ao STF fotos, vídeos, sonoras e a localização exata dos envolvidos no momento dos acontecimentos. O que torna a defesa dos réus muito difícil. As imagens são verdadeiras. Muitas delas são de reuniões oficiais do governo. Até o início de fevereiro, a grande imagem sobre a tentativa de golpe da turma de Bolsonaro era a de 8 de janeiro de 2023, quando seguidores do ex-presidente invadiram e quebraram tudo que encontraram pela frente no Palácio do Planalto, no Congresso e no STF, em Brasília (DF). Agora, perfila-se ao lado destas imagens os vídeos dos depoimentos do tenente-coronel Mauro Cid.
Bolsonaro já percebeu que o seu grande adversário nos tribunais são as imagens. Não foi por outro motivo que na sexta-feira (21/02) ele se emocionou e chorou arrependido numa reunião do PL, em Brasília. Na véspera, havia dito que estava de consciência tranquila a respeito da denúncia de 272 páginas apresentada pela PGR e, ao encerrar o seu relato, ter afirmado: “Vão prender o Bolsonaro? Caguei para a prisão”. Sabe que a imagem chorando é forte. Sempre escrevi que Bolsonaro não é uma pessoa de inteligência privilegiada e muito menos bem informado. Mas sempre disse que o considero “um cara muito esperto”, que sabe se adaptar às situações para sobreviver. Pessoas muito próximas ao ex-presidente concordam que no exercício do seu mandato na Presidência ele foi longe demais na pregação da conspiração. Ou seja, ele não era mais um deputado federal pelo Rio de Janeiro. Era o presidente da República, a mais alta autoridade do país, pregando contra a democracia e espalhando teorias da conspiração em 2020, em plena pandemia de Covid-19, que matou 700 mil brasileiros e outros milhares ao redor do mundo. Logo que se iniciaram as investigações sobre a tentativa de golpe, em fevereiro de 2024, escrevi o post Entre uma conspiração e outra sobrava tempo para Bolsonaro administrar o país? Lembro que havia mais de 6 mil militares (ativa, reserva e reformados), incluindo generais como Walter Braga Netto, 67 anos (ex-ministro da Defesa), que aderiram ao bolsonarismo não por questões ideológicas, mas para conseguir uma vaga na administração federal. Ou seja, pelo dinheiro. E quando o ex-presidente concorreu à reeleição e perdeu para Lula, muitos deste grupo de militares que estavam no governo ficaram desesperados porque iam perder o emprego e tornaram-se golpistas. Toda a história deles é contada na delação premiada de Cid.
Para fechar a nossa conversa. As novas tecnologias ajudaram a qualificar e a diminuir os altos custos da investigação policial, jornalística e científica. Claro que também aumentaram o risco das falsificações. Também é verdade que contribuíram para o aperfeiçoamento dos mecanismos de validação de autenticidade. Lembro o seguinte: se quisermos investigar o que aconteceu entre as quatro paredes onde se reuniram os conspiradores do golpe militar de 1964 é necessário ler muitas páginas de livros, pesquisas e jornais. Se quisermos saber o que aconteceu na conspiração para o golpe de estado em 2023, basta apertar um botão e veremos as imagens, os sons e os golpistas. É um reforço de que 1964 não se repetirá.