A história é conhecida. Mas ainda temos muito a explicar ao nosso leitor a respeito de como ela aconteceu. Filho de um operário com uma costureira, em 1958 nasceu em Tubarão (SC) Luiz Carlos Cancellier de Olivo, o Cau, como era conhecido entre os amigos. Na juventude, integrou o movimento estudantil ligado ao Partido Comunista Brasileiro (PCB) que lutou contra a Ditadura Militar (1964 a 1985). Foi jornalista, formou-se em Direito e seguiu carreira acadêmica na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Em 2016, chegou ao auge: assumiu o cargo de reitor da UFSC. No dia 2 de outubro de 2017, Cancellier subiu até o último andar do Beiramar Shopping, em Florianópolis, de onde se jogou, suicidando-se. No seu bolso foi encontrado um bilhete: “A minha morte foi decretada quando fui banido da universidade”, escreveu. No dia 14 de setembro, menos de um mês antes do suicídio, o reitor e outros seis professores foram presos pela Polícia Federal (PF) na Operação Ouvidos Moucos, acusados de terem formado uma quadrilha para desviar R$ 80 milhões de uma verba destinada ao ensino à distância. Esses são os fatos conhecidos.
Antes de começar a contar a história. Não estou discutindo se o então reitor da UFSC era culpado ou inocente. Estou discutindo os erros cometidos na investigação pela PF e a responsabilidade da imprensa no caso. Por estar comprometido com a formação de novos repórteres, vou olhar a Ouvidos Moucos com os olhos de um médico legista durante uma autópsia. Eu li, ouvi e vi tudo o que se publicou sobre o caso na época e o que tem sido publicado esporadicamente desde então. Uma das melhores reportagens com que cruzei foi a do repórter Luiz Makouf Carvalho, publicada em 3 de dezembro de 2017 no UOL. Há um consenso entre nós jornalistas de que a operação foi uma sucessão de erros, muitos grosseiros, como a quantia de dinheiro desviado, e outros absurdos contidos no relatório de 817 páginas feito pela delegada federal Érika Mialik Marena. Aqui é o seguinte, alerto os jovens repórteres: a delegada fez o seu pedido de prisão e de busca e apreensão para a juíza Juliana Cassol. A magistrada consultou o Ministério Público Federal (MPF), no caso o procurador da República André Bertuol, que concordou com os pedidos da delegada. Daí a juíza tomou a sua decisão, que foi atender à PF. O sistema funciona assim para evitar que passem erros ou exageros. No caso do reitor, usando a linguagem dos colegas do futebol, foi como se o erro tivesse entrado na área driblando os zagueiros e o goleiro e chutado a gol.
Por que isso aconteceu? Vários fatores ainda desconhecidos podem ter contribuído. Cito quatro em particular que considero fatais para uma investigação: arrogância, vaidade, ignorância e manipulação. A delegada Érika respondeu a um processo na Corregedoria da PF e foi considerada inocente. E assumiu a Superintendência da PF em Sergipe. Independentemente do destino que tiveram a delegada, a juíza e o procurador, o fato é que nós repórteres só tomamos conhecimento da fragilidade da Ouvidos Moucos porque o reitor se suicidou. Caso contrário, teria passado batida. A enorme lista de fragilidades da investigação foi publicada na imprensa. Eu mesmo, no dia 8 de outubro, fiz um post alertando para a nossa responsabilidade no caso. Uma pergunta que nós repórteres temos que responder é referente à delegada Érika. Ela é uma profissional experiente e moldada pelas dificuldades do trabalho de campo, que não é uma tarefa para qualquer policial. Foi coordenadora da Lava Jato, em Curitiba (PR), no período mais tumultuado da operação. Com esse currículo, como é que ela conduziu uma investigação em uma universidade, que é um ambiente inundado pela disputa interna entre os professores, e não levou em consideração essa realidade? Sendo que um dos desafetos do reitor, o corregedor-geral da UFSC, Rodolfo Hickel do Prado, que na época integrava a Advocacia-Geral da União em Santa Catarina, disse no seu depoimento que teve seus interesses econômicos contrariados pelo reitor. A matéria que citei do UOL fala sobre o episódio.
Ali era para a investigação ter tomado outro rumo. Não tomou. Seguiu em frente e deu no que deu. Há outra questão. Na época, a exemplo dos espetáculos públicos que eram as ações da Lava Jato, por todo território nacional as polícias começaram a fazer operações ruidosas e midiáticas. A Ouvidos Moucos foi uma delas. Foram mobilizados 115 agentes da PF para prender o reitor e seis professores. Poucos assuntos ganharam tanto espaço na imprensa pela maneira como nos venderam a Ouvidos Moucos: formação de quadrilha. Imaginem o reitor de uma universidade federal chefiando um bando de professores criminosos. É manchete em qualquer parte do mundo. Na qualificação de formação de quadrilha dada ao crime, a delegada pegou pesado. A não ser que ela saiba de algo que não colocou no seu relatório de 817 páginas. Por tudo que conhecemos, incluindo o que existe nos autos do processo, o reitor não é perigoso chefe de quadrilha. Foi apenas um professor apaixonado pela sua universidade que preferiu a morte à vergonha.
A investigação da delegada Érika na Operação Ouvidos Moucos carrega a marca da vaidade. Mas isso não é crime. Tanto que ela foi chefe do Departamento de Recuperação de Ativos e Cooperação Jurídica Internacional (DRCI) da PF, convidada pelo então ministro da Justiça e Segurança Pública Sergio Moro, que foi juiz da 13ª Vara Federal, em Curitiba. Moro é o símbolo da Lava Jato e o juiz que condenou o ex-presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva (PT-SP) por corrupção e lavagem de dinheiro. A condenação foi confirmada em segunda instância e Lula foi preso. O que acabou beneficiando o seu adversário na disputa pela Presidência da República, Jair Bolsonaro. Moro abandonou a carreira de 20 e poucos anos na magistratura para ser ministro de Bolsonaro. Quando o ex-juiz brigou com o presidente e demitiu-se, a delegada Érika foi exonerada do DRCI. No próximo dia 14 de setembro completam-se três anos da Operação Ouvidos Moucos e 19 dias depois, 2 de outubro, é a data em que o reitor subiu no último andar do shopping e se suicidou.