Era parte do aprendizado do repórter até a década de 80 passar pelo plantão das madrugadas de fim de semana na editoria de polícia. Nestes dias, as delegacias “ferviam de broncas”. Na minha primeira vez no plantão, entrei na sala de um delegado. Estavam ali sentados: um homem alto, mulato, chapéu panamá, gravata borboleta, óculos e fumando um cigarro com piteira. Ao seu lado uma pessoa de meia altura, com as mãos algemadas e de cabeça baixa. Sentado atrás de uma mesa surrada, cheia de papéis, cinzeiro sujo e um copo de café, estava o delegado, um homem que contava os dias para se aposentar. Perguntei-lhe qual era a bronca. Ele levantou-se, pegou uma pilha de ocorrências policiais e saiu a passos largos e rápidos em direção à porta da sala. No meio do caminho virou a cabeça em minha direção, tirou o cigarro da boca e disse: “Fala com o advogado do meliante”. Foi assim que fui apresentado a um personagem que ficou conhecido nas delegacias de polícia como “advogado de porta de cadeia”. Hoje a expressão é uma maneira pejorativa de se referir a um advogado. Eu não concordo. Os que conheci, e foram muitos, eram profundos conhecedores dos atalhos legais da lei e de como as coisas funcionam em uma delegacia. A maioria era policiais aposentados, como é o caso do que citei. O preso era um batedor de carteira, punguista.
Eu sempre conto essa história nas minhas palestras pelas redações do interior do Brasil e nos cursos de jornalismo. Aqui a contei como um “nariz de cera” – como os editores chamam os textos que não começam pela principal informação de uma notícia – por entender que essa é a melhor maneira de falar sobre o advogado Frederick Wassef, 53 anos, criminalista que nos últimos dias vem ocupando os espaços nobres dos noticiários ostentando o título de advogado da família do presidente da República Jair Bolsonaro (sem partido) e por ter dado abrigo em um prédio de sua propriedade em Atibaia, interior de São Paulo, ao subtenente aposentado da Polícia Militar do Rio de Janeiro Fabrício Queiroz, 54 anos. Queiroz foi preso semana passada por estar envolvido no caso da “rachadinha”, como ficou conhecida a exigência da devolução de parte dos salários dos funcionários do gabinete do então deputado estadual e hoje senador do Rio de Janeiro Flávio Bolsonaro, filho do presidente. Queiroz, que foi chefe de gabinete de Flávio, é para o presidente a âncora que o liga ao lamaçal, como Paulo César Farias, o PC Farias, foi para o então presidente Fernando Collor – fiz um post detalhando essa comparação em 13 de fevereiro, “PC Farias foi âncora de Collor no lamaçal e o Queiroz é o de Bolsonaro”. Queiroz é a ameaça real para a sobrevivência política de Bolsonaro, seja pela questão da “rachadinha” como pelas ligações dele com os milicianos do Rio, inclusive os envolvidos no caso da execução da vereadora Marielle Franco e do seu motorista Anderson Gomes, em 2018.
Antes da pergunta que faço e quero refletir com meus colegas repórteres cabe uma explicação: Wassef é uma pessoa de raciocínio rápido, articulado, grande conhecedor dos atalhos legais da lei e de como a máquina da Justiça funciona. Ele também sabe como as coisas acontecem em Brasília (DF), uma terra que não é para amadores. Não acredito que tenha se aproximado de Bolsonaro por ideologia. Viu uma oportunidade de bons negócios e apostou. Tanto que por conta da aproximação com a cúpula do governo a sua ex-mulher Cristina Boner – que está envolvida em escândalos – conseguiu contratos milionários para a sua empresa Globoweb Corp (serviços de informática) no governo federal. Agora a pergunta: como uma pessoa com esse perfil vai oferecer esconderijo para uma bomba ambulante, como pode ser descrito Queiroz? Há duas hipóteses para ele ter abrigado Queiroz. A primeira é seu uso como uma moeda para obter vantagens que recompensariam qualquer perda que viesse a ter no futuro. E a segunda por exigência do Gabinete do Ódio, como são conhecidas as pessoas do círculo íntimo do presidente, para que ele continuasse no jogo.
Vamos lembrar o seguinte. Sempre que alguém cai em desgraça e pode prejudicar o presidente, o Gabinete do Ódio abre fogo. Até agora não atiraram em Wassef. O que surgiu veio de Curitiba (PR). Foi lembrado que, em 1992, Wassef fazia parte de um grupo de pessoas místicas pertencentes ao Lineamento Universal Superior (LUS), que havia sido apontado como responsável pelo desaparecimento e morte de um menino. Conversei com o jornalista e professor Ivan Mizanzuk, que pesquisou o assunto. Ele disse que o caso do menino não tem nada a ver com o grupo do LUS – há um vasto material do professor disponível na internet. Mizanzuk colocou as coisas no lugar. Por ter sido desmentido o boato durou pouco.
Existe uma possibilidade bem forte de Wassef ter se entendido com o Gabinete do Ódio. Por quê? Simples. Ele tem um discurso muito límpido e direto para explicar as coisas para o grande público. Sabe conversar com jornalistas, principalmente os jovens. E sabe, como se diz na gíria das redações, “matar a bola no peito, rolar na coxa, deixar cair na grama e sair jogando”. Fez isso quando assumiu que nem o senador Flávio e muito menos o presidente da República sabiam que Queiroz estava em Atibaia. O que ele fazia lá, Wassef disse que vai explicar mais tarde. Como se dizia nos plantões policiais, “matou a bronca no peito”. O presidente Bolsonaro é um homem que vive com um pé do lado da linha da lei e o outro na ilegalidade. Esse tipo de comportamento atrai pessoas como o advogado Wassef, um homem que conhece o caminho das pedras. Como o advogado que encontrei na sala do delegado.