Na terça-feira (09), por volta das 14h, horário de Brasília, ao invadirem um programa transmitido ao vivo pelo canal TC Televisión, em Guayaquil, os traficantes de cocaína do Equador transformaram em notícia globalizada a disputa que travam pelo poder com o presidente do país, Daniel Noboa, 36 anos. Treze bandidos tomaram como reféns jornalistas, técnicos e outros funcionários durante 30 minutos e fizeram ameaças com armas e explosivos. No final, foram presos. Enquanto isso, outro grupo de criminosos invadiu a Universidade de Guayaquil, espalhando terror entre alunos, professores e funcionários. A violência começou no ano passado. Na campanha para as eleições presidenciais, os traficantes mataram o candidato Fernando Villavicencio com três tiros na cabeça. Dias depois executaram Pedro Briones, dirigente do Movimento Revolução Cidadã. Os narcotraficantes equatorianos pertencem a 22 organizações criminosas que são ligadas a 12 cartéis de drogas mexicanos, sendo que um deles é o Sinaloa, que opera nos Estados Unidos, na Turquia e em outros países. Eles transformaram o Equador em um campo de batalha porque o país ocupa uma posição estratégica. Pelos seus portos, no Oceano Pacífico, é escoada a cocaína da Colômbia e do Peru para os Estados Unidos, a Europa e outras partes do mundo. O presidente Noboa declarou situação de “conflito armado interno”, o que significa que as Forças Armadas foram autorizadas a atuar.
O estopim desse conflito foi a fuga da cadeia de dois chefões do tráfico: José Adolfo Macías Salazar, o Fito, líder de uma facção chamada Choneros, e Fabricio Colón Pico, da Los Lobos. Mais de 70 pessoas foram mortas e várias sequestradas, incluindo policiais e até um comerciante brasileiro, Thiago Allan Freitas, 38 anos, dono de uma churrascaria – há um vasto material publicado nos jornais disponível na internet. Freitas, segundo informação da família, já foi resgatado pela polícia. Não vou abrir muito o leque da nossa conversa porque os eventos ainda estão acontecendo e são relatados pela imprensa. Vou focar em dois fatos que considero importantes e que estão ficando na periferia da cobertura diária. O primeiro é a tentativa das organizações criminosas de se articularem para derrubar o presidente Noboa. Até este episódio, as regras eram estas: os narcotraficantes tocavam o terror com atentados públicos, como a queima de ônibus, sequestros e outras barbaridades praticadas com a intenção de assustar a população e as autoridades. E usavam laranjas para defender os seus interesses políticos. Por que agora estão agindo às claras? Sabe-se que o último que usou essa estratégia foi Pablo Escobar (1949-1993), líder do Cartel de Medellín, na Colômbia, na década de 80. Com a ajuda dos americanos, as forças policiais colombianas mataram Escobar e destruíram o seu cartel. Os narcotraficantes equatorianos estão agindo às claras porque o país não é produtor de cocaína. É só um ponto geograficamente estratégico para a passagem da droga para os grandes mercados consumidores. No caso da Colômbia, os americanos gastaram 5 bilhões de dólares em ajuda porque o país é o maior produtor de cocaína do mundo. Os narcotraficantes equatorianos armaram todo esse rolo para exigir das autoridades locais que seguissem as regras dos cartéis e virassem o rosto para o outro lado enquanto passavam com toneladas de cocaína. Só que cometeram um erro: ao invadir um programa de televisão transmitido ao vivo deram uma dimensão mundial para o que está acontecendo no Equador. E com isso atraíram a atenção dos Estados Unidos e dos países vizinhos, como o Brasil. Usando o linguajar dos meus colegas que fazem a cobertura dos assuntos policiais. A chapa pode ficar quente para os narcotraficantes equatorianos. Por exemplo, caso os americanos façam um bloqueio naval, causariam sérios danos à rota da cocaína.
O segundo fato que merece mais atenção na cobertura da imprensa diz respeito ao seguinte. Nas últimas três décadas, os grupos responsáveis pela produção, o transporte e o varejo da cocaína se especializaram e se organizaram como se fossem uma grande empresa multinacional. Temos escrito que toda essa confusão no Equador começou depois que fugiram da cadeia dois importantes líderes do setor de transporte de drogas: Fito, da Choneros, e Colón, da Los Lobos. Falei sobre o assunto com um ex-agente do serviço de inteligência da Polícia Federal (PF) que atualmente trabalha dando consultoria de segurança para grandes empresas multinacionais. Ele me disse que realmente, nos anos 80 e até metade da década de 90, essas lideranças eram importantes dentro do processo de distribuição da droga. Nos dias atuais são substituíveis, porque o poder de decisão está bem acima deles, entre executivos que representam os interesses de investidores. Perguntei que são os investidores, ele respondeu que são pessoas que fazem fortunas de maneira ilegal colocando o seu dinheiro num investimento de alto risco. Exemplificou que, ao aplicar o seu dinheiro no transporte da cocaína, correm o risco de perder tudo caso a carga seja descoberta e caia nas mãos das autoridades. Mas ganham uma fortuna se der tudo certo. Entre os repórteres que trabalham com investigação jornalística essa história dos investidores em crimes não é nova. Lembro que lá por 2005 fiquei quase meio ano tentando falar com um homem que ganhou muito dinheiro contrabandeando cigarros pirateados do Paraguai para o Uruguai atravésdo território brasileiro. Na época, cheguei ao nome dele por meio de uma fonte em Santana do Livramento, cidade gaúcha separada de Rivera, no Uruguai, por uma avenida. Soube que ele estava investindo na compra de diamantes ilegalmente extraídos da Reserva Roosevelt, dos índios cinta-larga, em Espigão do Oeste (RO). Tivemos uma longa e infrutífera conversa no escritório de um advogado. Não consegui grande coisa. Mas sai de lá comalgumas dicas preciosas a respeito de como as coisas funcionavam na reserva entre os compradores de diamantes e os líderes dos cinta-largas que foram úteis quando estive na região.
Arrematando a nossa conversa. Os rolos no Equador vêm de longa data. E as quadrilhas foram gestadas dentro dos presídios, a exemplo do que aconteceu no Brasil, onde nasceram e se estruturaram duas grandes organizações criminosas, o Comando Vermelho (CV), do Rio de Janeiro, e o Primeiro Comando da Capital (PCC), de São Paulo. Hoje, o CV e o PCC estão organizando uma rota pelos rios da Bacia Amazônica para trazer a cocaína da Colômbia, da Bolívia e do Peru para abastecer o mercado interno e exportá-la pelos portos nacionaispara os Estados Unidos e países europeus. Comparada com a rota equatoriana, a brasileira é bem menor. Mas tem potencial para crescer caso as coisas se compliquem no Equador. Lembro-me de um dito popular, muito falando nos sertões do Brasil: “Coloque as barbas de molho quando a do vizinho estiver pegando fogo”. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) anunciou, na quinta-feira (11), o ministro aposentado do Supremo Tribunal Federal (STF) Ricardo Lewandowski como novo ministro da Justiça e Segurança Pública. Ele substitui Flávio Dino, que ocupará uma cadeira do STF. Que influência terão nas escolhas de Lula, para o segundo escalão da Justiça, os acontecimentos no Equador? Fica a pergunta.