Se existe uma coisa que funciona muito bem no governo do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) é a máquina de fake news. Ela é operada pelo Gabinete do Ódio, formado por um pequeno e qualificado grupo de pessoas que vivem ao redor do presidente, entre elas os seus filhos parlamentares: Carlos, vereador do Rio, Flávio, senador do Rio de Janeiro, e Eduardo, deputado federal por São Paulo. Essa máquina opera nas “bolas divididas” entre Bolsonaro e seus adversários políticos. Para quem não é jornalista: nas redações, a expressão “bola dividida” é usada como referência a uma disputa de versões sobre um fato na opinião pública. Um exemplo recente. No domingo (28/03), o soldado Wesley Soares Góes, 38 anos, da 72ª Companhia Independente da Polícia Militar (CIPM), instalada em Itacaré, cidade turística de 27 mil habitantes, na Costa do Cacau, no sul da Bahia, viajou 250 quilômetros até o Farol da Barra, em Salvador. Armado com duas pistolas, um fuzil e com o rosto pintado de verde e amarelo, ficou durante três horas dando tiros para o alto e gritando frases desconexas. Todas as informações disponíveis indicam que ele surtou. Foi cercado por um grupo do Batalhão de Operações Especiais (Bope) da Polícia Militar. Durante quatro horas de conversas, os policiais não conseguiram dominar a situação. No final, Wesley teria atirado contra o Bope, que respondeu ao fogo e o matou.
A versão do caso dada pelo governo da Bahia tem como pilar a reação do Bope respondendo ao fogo disparado pelo soldado Wesley. Uma versão frágil, que deixou um monte de perguntas no ar. A deputada bolsonarista Bia Kicis, do Distrito Federal, presidente da Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados, entrou na “bola dividida” e deu a sua versão do fato: “(…) soldado da PM da Bahia abatido por seus companheiros. Morreu porque se recusou a prender trabalhadores. Disse não às ordens ilegais do governo Rui Costa. Esse soldado é um herói (…).” Felipe Pedri, secretário de Comunicação Institucional do governo federal, fortaleceu a versão da deputada: “Lúcido, o PM Wesley perdeu a vida mostrando a loucura (…) suposta segurança sanitária”. Eles apagaram essas versões das suas redes sociais. Mas elas estão circulando. E por tudo que se sabe não têm nada a ver com o episódio. Mas aproveitaram para atacar o governador Rui Costa, que é do PT e faz parte de um grupo de governadores que está enfrentando a política genocida do presidente Bolsonaro referente à pandemia. Em fevereiro do ano passado, uma patrulha do Bope matou durante um tiroteio em Esplanada, no interior da Bahia, o miliciano carioca Adriano Magalhães da Nóbrega, ex-capitão do Bope do Rio de Janeiro, aquele do filme Tropa de Elite, e amigo da família Bolsonaro. Até hoje o governo baiano está dando explicações sobre o episódio.
O caso do soldado Wesley foi citado por ser o mais recente. Mas há centenas de outros espalhados contra adversários de Bolsonaro, como o do governador Eduardo Leite (PSDB), do Rio Grande do Sul, que a cada vez que fala em público precisa explicar o uso das verbas federais enviadas para o Estado. E até de aliados do presidente. Sou um velho repórter e sei bem como é a vida de um assessor de imprensa em um órgão público, principalmente de um governador. Eles se reúnem a portas fechadas e depois chamam o assessor de imprensa para explicar a versão deles. Por muitos anos, o mesmo procedimento era adotado pela iniciativa privada. Nos órgãos públicos e nos privados ninguém esquece que o assessor de imprensa é um jornalista, portanto, “um inimigo na trincheira”. Há vários exemplos de profissionais que saíram das assessorias e publicaram livros. Hoje há empresas especializadas em colocar na mídia a versão de quem os contratou. É do jogo. Lembro-me de uma história. Em 1996, eu fazia parte de uma equipe de repórteres que foi para São Paulo cobrir a queda de um Fokker 100 da TAM, voo 402, com destino ao Rio de Janeiro. O avião caiu 24 segundos depois de decolar, matando 99 pessoas (três no solo), na Rua Luiz Orsini Castro, no Jabaquara. Logo que chegamos a São Paulo liguei para a assessoria de imprensa da TAM, que passou a versão da empresa sobre o acidente e um telefone que estaria à disposição durante 24 horas em caso de necessidade. Trabalhamos uma semana no caso. E sempre que ligava para a assessoria e dizia o tinha na mão e iria publicar, eu ouvia: “Continuamos mantendo a mesma versão”. Eles só mudaram a versão quando começaram a sair informações oficiais sobre o que tinha acontecido.
Sempre conto essa história da TAM nas minhas palestras para estudantes de jornalismo como exemplo de profissionalismo. Ou seja, a assessoria não alimentou a fogueira de boatos. Mas não deixou de contar a sua versão dos fatos. Hoje as assessorias de imprensa estão profissionalizadas tantos nos órgãos públicos quanto nos privados. Mas não são páreos para a máquina de fake news do governo Bolsonaro. Pegue-se o episódio do soldado Wesley. O que aconteceu com ele não tem nada a ver diretamente com as determinações de isolamento social. Mas, por ser justamente nessa área que está acontecendo o enfrentamento dos governos estaduais com a política genocida de Bolsonaro é que a máquina de fake news explorou a figura de Wesley. Claro, a imprensa não cobrou essa versão. Mas noticiou que ela existiu. É o suficiente para espalhar a dúvida. A imprensa não tinha como não noticiar essa versão porque ela existiu.
As redações não podem deixar de dar as duas versões dos acontecimentos. As assessorias de imprensa não precisam facilitar o trabalho da máquina de fake news do governo federal, deixando pontas soltas naquilo que tornam público. Logo que entrei na redação, em 1979, os assessores de imprensa, fossem eles do governo ou de empresas privadas, nós repórteres os chamávamos de “chapa branca”. Hoje, com a carência de repórteres nas redações devido aos enormes cortes de pessoal feito pelas empresas de comunicação, as matérias distribuídas pelos assessores ganharam espaços nos jornais. Antigamente serviam de pautas. Agora são notícia. O Gabinete do Ódio percebeu essa brecha e apostou nela. A guerra de versões foi implantada pelo ex-presidente dos Estados Unidos Donald Trump (republicano). Foi copiada e aperfeiçoada pelo Gabinete do Ódio. Trump tentou se reeleger no ano passado e foi derrotado por Joe Biden (democrata). A máquina de fake news de Trump não o reelegeu. Pelos movimentos do Gabinete do Ódio se percebe que eles estão corrigindo os erros cometidos pelos republicanos americanos. Os assessores de imprensa dos adversários de Bolsonaro são os alvos do momento.