Como os ricos estão se virando na pandemia? Existe mercado ilegal para a vacina?

Usar vacina contrabandeada é o mesmo que fazer roleta russa. Foto: Reprodução

No auge da era do rádio havia um noticiário chamado Repórter Esso. Ele foi ao ar pela primeira vez na Rádio Nacional no dia 28 agosto, uma quinta-feira de 1941, no auge do mais mortal conflito da humanidade, que deixou um rastro de 85 milhões de mortes, a Segunda Guerra Mundial (1939 a 1945). Na abertura do noticiário, o vozeirão do apresentador Roberto Figueiredo anunciava: “O seu Repórter Esso: testemunha ocular da história.” A última edição do Esso foi no dia 31 de dezembro, uma terça-feira de 1968. Quero conversar com os meus colegas sobre a frase “testemunha ocular da história”. Os caras que bolaram o programa tinham consciência da importância dos acontecimentos da época para a história da humanidade e que no futuro o noticiário seria um guia para mostrar os fatos aos pesquisadores. Há centenas de pesquisas científicas sobre o Brasil na Segunda Guerra e outros episódios desse conflito nas quais se encontram citações ao Repórter Esso. De todas as desgraças que se abateram sobre a humanidade depois da Segunda Guerra a pandemia causada pela Covid-19 até agora é uma das fortes candidatas ao primeiro lugar. Nos 15 meses desde que se instalou no planeta, ela já matou mais de 2,7 milhões de pessoas, contaminou 107 milhões e atirou a economia mundial em uma das suas piores crises, desempregando milhões de trabalhadores e levando ao fechamento e ao desaparecimento de milhares de negócios. Hoje (28/03/2021), o Brasil é um berçário das mutações do vírus. Estão morrendo mais de 3,2 mil pessoas por dia, no total os mortos já passam de 300 mil. Os sistemas de saúde público e privado entraram em colapso em 26 dos 27 estados. Pessoas morrem por falta de vagas nos hospitais. Como isso tudo vai acabar?

Respondendo à pergunta: ninguém sabe. Mas um dia vai acabar, porque já foram inventadas vacinas e as pesquisas seguem em ritmo acelerado em busca de outros medicamentos. E quando terminar a pandemia causada pela Covid-19, as “testemunhas da história” serão todos os trabalhos dos jornalistas que hoje estão escrevendo, fazendo áudios, vídeos e fotos sobre as entranhas desse episódio que não se restringem apenas à área médica. Mas também à política, econômica, policial e outras. Sobre esse rolo tenho lido, ouvido e visto todas as notícias, grandes reportagens, documentários, livros e conversando muito com as minhas fontes feitas ao longo de 40 anos de profissão e 30 e tantos de redação. Estou realizando um sonho que é poder fazer um mergulho de profundidade nos acontecimentos. E o que vou dizer não é opinião. É fato. O jornalismo brasileiro vive um dos seus bons momentos na cobertura da pandemia. Alguns pequenos reparos precisam ser feitos, no entanto. Um deles me foi lembrado pelo professor e pesquisador José Antonio Meira da Rocha, 62 anos, do curso de Jornalismo da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), campus de Frederico Westphalen. Ele me fez duas perguntas muito simples: “Como os ricos estão se virando na pandemia? Existe mercado ilegal para a vacina?” Quem me conhece sabe que sou muito organizado em minhas anotações. Vasculhei todas para responder à pergunta do professor. Não encontrei nenhuma referência ao modo como os ricos estão vivendo esse período da história. Sobre o mercado ilegal de vacinas há pequenas matérias espalhadas pelos noticiários. Inclusive, em 16 de dezembro de 2020, fiz o post “Confusão de Bolsonaro no caso da vacina cria a oportunidade para o contrabando”. Por que não existem grandes matérias sobre como os riscos estão se virando? A resposta está nos nossos textos. Até alguns anos atrás, os grandes empresários e donos das maiores fortunas do mundo tinham como costume trocar ideias com os seus “bruxos” sobre os assuntos do seu setor e outros bastidores. E suas famílias adoravam frequentar a “coluna social”. Tanto que grandes furos nacionais foram dados pelos colunistas sociais. Aliás, era importante para o repórter ter boas relações com o pessoal “da social”. Essa era acabou. A atual geração dos donos das grandes fortunas mantém-se longe da imprensa e quem administra a empresa é um Chief Executive Officer (CEO), que responde ao conselho de acionistas. O CEO é um empregado que perde o cargo se não atingir as metas de lucro. A vida particular dessa geração só aparece na imprensa quando um deles se mete em confusão policial ou escândalo de corrupção, como foram os casos do Mensalão (2005) e do Petrolão ( 2016) – há uma vastidão de matérias disponíveis na internet.

A maioria deles tem dupla cidadania ou visto de permanência em outro país, por ter negócios lá. E também um jatinho particular. O nosso acesso hoje está um andar abaixo dos herdeiros das grandes fortunas: os novos ricos. Antes de seguir a conversa. Não é crime ficar rico. Desde que seja dentro da lei. Voltando à conversa. Um caso recente (18/03) abriu uma porta para se investigar como vivem as direções das igrejas neopentecostais no Brasil. O bispo Edir Macedo, 76 anos, fundador da Igreja Universal do Reino de Deus, e sua mulher Ester Bezerra, 72, se vacinaram em Miami, Estados Unidos. Eu conheço a história do pastor. Não é uma história limpa. No Brasil, ele pregou aos seus fiéis: “Meu amigo e amiga, não se preocupe com o coronavírus. Porque essa é tática, ou mais uma tática, de Satanás trabalhando com o medo, o pavor. Trabalha com a dúvida. E quando as pessoas ficam apavoradas, com medo, em dúvida, as pessoas ficam fracas, débeis e suscetíveis. Qualquer ventinho que tiver é uma pneumonia.” O que Edir Macedo pregou para os seus fiéis e fez é da conta dele. Não é crime. Mas o fato do pastor  e seus colegas de várias outras igrejas neopentecostais terem uma bancada própria de deputados federais e senadores. Serem donos de redes de rádios, TVs e jornais (papel e site). Significa que eles têm influência na vida de todos os brasileiros. Portanto, nada mais justo que se façam matérias descrevendo como estão se virando na pandemia. As gerações futuras, incluindo os neopentecostais, vão querer saber. Podem apostar, colegas.

Outra janela para ver o mundo dos novos ricos foi aberta pela matéria da repórter Thais Bileny, publicada na Piauí (24/03): “Empresários tomam vacinas às escondidas”. Os irmãos Rômulo e Robson Lessa, donos da Viação Seritur, em Belo Horizonte (MG), organizaram uma vacinação clandestina com vacinas da Pfizer em uma garagem de ônibus. Cobraram R$ 600 pelas duas doses para empresários, políticos e pessoas importantes na sociedade local. De onde vieram as vacinas e como tudo aconteceu está sendo apurado pela Polícia Federal (PF) na Operação Camarote. Foram cumpridos seis mandados de busca e apreensão expedidos pela 35º Vara Federal Criminal de Belo Horizonte. Precisamos ficar atentos ao inquérito da PF, porque ele vai puxar o fio de uma meada que nos mostrará as entranhas de um esquema que, além de ser criminoso, é muito perigoso. Eu havia apostado com um colega inglês que o primeiro caso de contrabando de vacina na América do Sul apareceria na Tríplice Fronteira Brasil (Foz do Iguaçu), Argentina (Puerto Iguazú) e Paraguai (Ciudad del Este), a meca do contrabando no continente. Descobri na semana passada que os ricos paraguaios estão preferindo investir no “turismo da vacina”. Uma matéria publicada no jornal ABC Color (23/03) cita que os pais da primeira-dama do país, Silvana López Moreira, o empresário Néstor López Moreira e sua mulher Rossana, e mais duas filhas (Sophia e Adriana), foram aos Estados Unidos em busca da vacina. Conversei com cinco brasiguaios – agricultores brasileiros que migraram para o Paraguai – sobre a vacina. Como a maioria deles conserva a cidadania brasileira, eles virão se vacinar no Brasil. Uma semana antes desse episódio no Paraguai, em Cuiabá (MT), o site Documento publicou uma matéria que viralizou na América do Sul. Um grupo de 120 empresários fretaria um avião para ir a Cuba tomar a vacina Spunik V. Cada um iria gastar R$ 30 mil na empreitada. O Consulado Geral de Cuba em São Paulo distribuiu uma nota oficial desmentindo a história toda, que passou a ser tratada nas redações como fake news. Conversei com o pessoal em Cuiabá. Eles alegam que a conversa entre os empresários existiu e que alguém se precipitou, falou demais e a coisa toda foi por água abaixo.

Como se diz no interior do Rio Grande do Sul: “onde há fumaça há fogo”. O fato é que há um temor muito grande entre todos os brasileiros de serem a próxima vítima do vírus e acabarem morrendo no corredor de um hospital, tendo dinheiro ou não, simplesmente porque o sistema de saúde entrou em colapso. Frente a essa realidade, o novo rico arriscaria comprar uma vacina contrabandeada ou desviada dos estoques do governo para usar na sua família? Não há garantia do que tem dentro da ampola. É como fazer uma roleta-russa. A imagem que temos dos novos ricos é de que são pessoas bregas e arrogantes. Mas todos concordamos que não são estúpidos. Em todo o texto só citei fatos que publicamos e que precisam ser aprofundados. E que servem para reflexão dos repórteres, principalmente dos jovens que estão na correria das redações. Essas notícias são portas que se abrem para que o repórter possa se aprofundar em novas realidades. Há uma citação atribuída ao pensador Emir Sader circulando nas redes. “Agora, em vez dos pobres nos aeroportos, tem ricos no SUS. O mundo gira, porque é redondo”.

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