
Na manhã de sábado (8/3), estava em um supermercado de Porto Alegre (RS), aproveitando uma oferta de maminha embalada a vácuo para o churrasco de domingo. Enquanto remexia as embalagens, procurando pelo melhor pedaço de carne, um homem, aparentando uns 50 e poucos anos, se aproximou e começou a revirar um monte de invólucros de picanha. Puxando conversa comigo, disse: “Viu o preço da picanha do Lula?” Respondi que sim. E acrescentei que tinha preferência pela maminha, não só pelo preço ser menor, mas por considerá-la uma carne mais saborosa. Há uma divisão entre os gaúchos a respeito da maminha e da picanha, duas carnes nobres. Pensei que o assunto ia enveredar por este rumo. Estava enganado. O homem começou a falar das promessas que Lula tinha feito durante a campanha e que não havia cumprido. Estava tentando me convencer a votar no candidato bolsonarista a presidente em 2026. Não discuti e deixei que falasse. Dias antes, já havia acontecido algo semelhante. Estava abastecendo o carro em um posto de combustíveis quando fui abordado por um jovem, que comentou comigo o absurdo do preço da gasolina, e culpou Lula. E vendeu o “seu peixe”, tentando me convencer a votar na oposição para presidente. Esse tipo de abordagem tem se intensificado desde o início do ano. Eu, pelo menos, tenho sido abordado no mínimo uma vez por semana.
Nestas ocasiões, não me identifico como jornalista. Simplesmente ouço a pessoa e não discuto. Muito pelo contrário. Demonstro interesse na conversa, para que ela se sinta estimulada a falar. Por que faço isso? Logo que comecei a trabalhar em redação de jornal, em 1979, aprendi que ficar atento aos comentários das pessoas nas filas de supermercado, nas mesas vizinhas nos botecos ou em qualquer outro lugar sempre agrega conhecimento da realidade ao repórter. E também é uma fonte de pautas. Já fiz grandes reportagens ouvindo comentários alheios. O meu procedimento é o seguinte. Escuto a conversa e faço uma “verificação dos fatos”, uma pesquisa para saber a veracidade e a amplitude do que ouvi. Caso der positiva a pesquisa, a transformo em pauta e vou à luta. Sobre a conversa do supermercado, o que existe de concreto é o seguinte. O “corpo a corpo”, também conhecido como “trabalho de formiguinha”, da campanha presidencial de 2026 já está nas ruas. Duas explicações que julgo necessárias. A primeira: defino como militante a pessoa que trabalha para um partido por identificação ideológica, e não por dinheiro. A segunda: nos tempos das barulhentas máquinas de escrever nas redações, usava-se a expressão “corpo a corpo”, ou “trabalho de formiguinha”, para descrever os militantes de um partido que tentavam convencer alguém a votar no seu candidato puxando conversa com estranhos em lugares públicos usando um estratagema que consistia em falar mal do adversário político em um tom de voz que fosse ouvido por todas as pessoas ao redor. O “corpo a corpo” foi muito forte até o início da década de 90, quando aconteceu a profissionalização das campanhas eleitorais pelos marqueteiros políticos, que deram prioridade à comunicação de massa. Com a popularização das novas tecnologias de comunicação, o “corpo a corpo” renasceu. Por quê? Simples: uma historinha contada para um estranho em um lugar público, que seja escutada pelas pessoas ao redor, pode ser mencionada por um dos ouvintes nas suas redes sociais acompanhada de um “ouviu de um cara no supermercado isso ou aquilo”. Logo a mensagem começa a circular.
Terminada a explicação, recomecemos a nossa história. As observações que fiz sobre as conversas que ouvi ao ser abordado pela militância da oposição falam como se o bolsonarismo fosse uma grande frente de direita. Sabemos que não é. São um grupo controlado pela extrema direita, que por sua vez dominou a direita democrática. Eles não mencionam o nome do candidato deles a presidente. O foco da conversa é colar na administração do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), 79 anos, o cartaz de mentiroso, safado e outros adjetivos pouco lisonjeiros. Observei que o fato de a oposição não ter definido um candidato à Presidência da República enfraquece muito a mensagem que estão espalhando. Creio ser esta a fonte do desespero dos seguidores do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), 69 anos, na insistência de que ele indicará quem o substituirá nas eleições de 2026, visto que o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) o tornou inelegível até 2030. O governo e os seus aliados ainda não estão no “corpo a corpo”. A estratégia do marqueteiro de Lula, o seu ministro de Comunicação Social (Secom), Sidônio Palmeira, 67 anos, é a comunicação de massa. Mas há indícios que o governo vai entrar no “corpo a corpo”. Vou explicar. Publicamos muitas coisas sobre a decisão de Lula de nomear a ex-presidente do PT, Gleisi Hoffmann, 59 anos, ministra da Secretaria de Relações Institucionais. E a intenção do presidente de convidar para o ministério o deputado federal e ex-candidato a prefeito de São Paulo Guilherme Boulos (PSOL), 42 anos. Mas uma coisa não publicamos. Gleisi e Boulos são especialistas em mobilização das bases partidárias. Eles sabem o valor do “corpo a corpo” na disputa eleitoral. Tática muito usada nas décadas de 70 e 80. Lembro ao leitor que os bolsonaristas estão copiando e aperfeiçoando práticas usadas na disputa eleitoral pela esquerda e pela direita democrática para chegar ao poder.
Nos dias atuais, março de 2025, há uma espécie de consenso na imprensa de que a eleição presidencial de 2026 será decidida no detalhe. E o detalhe pode ser o trabalho da militância. Alerto para o seguinte. Nos últimos tempos, a cobertura que a imprensa vem fazendo da disputa eleitoral tem se focado no “tapetão”. O que chamo de “tapetão”? Esmiuçar as pesquisas eleitorais, valorizar os comentários políticos, os especialistas em estatísticas e por aí afora. Basta ver, ler e escutar os noticiários para perceber que há uma carência do trabalho do repórter ouvindo as pessoas e conversando com a militância. Se bem lembro, lá por 2010 aconteceram demissões em massa nas redações. Os repórteres foram substituídos pelos comentaristas. O resultado dessa troca foi a sobrevivência econômica dos jornais, que sofriam com a queda no faturamento provocada pelo êxodo de anunciantes e leitores para as novas mídias, trazidas pela popularização da internet. Sobreviveram, mas perderam a qualidade, porque o repórter é a ligação entre a realidade e a redação. Na opinião de teóricos da comunicação, essa ligação foi substituída pela participação direta do leitor nas redações através de aplicativos e outros meios. O leitor sempre teve acesso às redações. O fato é o seguinte: a carência de repórteres nas ruas facilitou a vida dos fabricantes de fake news.