Bolsonaro continua enfiando o dedo na ferida de 64. Por quê?

A exemplo de dezenas de jovens que enfrentaram os militares em 1964, Fernando Augusto (direita), pai do presidente da OAB, foi preso e desapareceu. Foto: reprodução

O presidente da República, Jair Bolsonaro (PSL – RJ), há duas décadas vem tentando reescrever a história do Golpe Militar de 1964. Ele nega que tenha existido o golpe (1964 a 1985), ignorando uma montanha de documentos e testemunhas que atestam a derrubada pelos militares do governo do então presidente da República João Goulart, o Jango, gaúcho de São Borja, do antigo PTB. Ele não faz isso por ser capitão da reserva do Exército. Mas para ganhar espaço na mídia. Foi assim que chegou a presidente da República. Mas ontem (segunda-feira), ele passou dos limites. Falou que caso houvesse interesse do atual presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Felipe Santa Cruz, 47 anos, ele diria quem o matou o pai dele, o então estudante universitário Fernando Augusto de Santa Cruz. Aos 26 anos, em fevereiro de 1974, ele foi preso no Rio de Janeiro e desapareceu. Ele era militante da Ação Popular (AP), um grupo que lutou contra os militares. Bolsonaro afirmou que quem matou Fernando Augusto foi a guerrilha, e não os militares, como provam dezenas de documentos – há material na internet sobre o assunto.

Esse é o cenário. Para Bolsonaro, essa declaração rendeu generosos espaços nos noticiários. E a coisa ficou assim, como foi nas outras vezes, por exemplo na homenagem que fez ao coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra (falecido em 2015), que foi um símbolo dos torturadores durante o governo militar. Mas, para a família do presidente da OAB, é outra história. Felipe tinha dois anos quando o pai desapareceu. Não tem como explicar a um filho uma situação dessas. Essa é a experiência que tenho de ter entrevistado dezenas de famílias pelo Brasil afora que tiveram pessoas desaparecidas durante o Regime Militar. Em 1989, eu escrevi a história de João Machado dos Santos, o João Sem Terra, uma liderança no Rio Grande do Sul da luta pela reforma agrária. Em 1964, ele foi preso e torturado e desapareceu. Em 1989, eu encontrei os filhos dele, que, na época, viviam perambulando pelo Brasil à procura do pai. João Sem Terra foi encontrado vivendo com outro nome em Goiás. Conto a história dele no livro A saga do João Sem Terra.

Em 2010, em parceria com os repórteres Carlos Etchichury, Humberto Trezzi e Nilson Mariano, escrevi o livro Os Infiltrados – Ele eram os olhos e os ouvidos da Ditadura. Contamos a história dos agentes do governo que se infiltraram nos movimentos populares. Além desse livro, eu fiz dezenas de reportagens sobre o assunto, por exemplo, em 1980, em parceria com o repórter André Pereira, fizemos uma série de matérias sobre como os clandestinos das ditaduras do Cone Sul (Uruguai, Argentina e Chile) viviam no Brasil. A esperança de encontrar a pessoa desaparecida, viva ou morta, nunca se apaga. Jair Krischke, do Movimento de Justiça e Direitos Humanos, em Porto Alegre, é uma testemunha desse drama. Na Argentina, no Uruguai e no Chile, países que também foram vítimas de Golpe de Estado, os militares envolvidos com tortura foram parar na cadeia. No Brasil, não. Em 1979, a oposição e os militares negociaram a Lei da Anistia.  Mas ficou a ferida e as lembranças insistem em povoar os sonhos de muitas famílias, como é o caso do presidente da OAB. Ao usar histórias como essa para ganhar espaço nos jornais, Bolsonaro está brincando com uma granada sem pino. É simples assim. 

2 thoughts on “Bolsonaro continua enfiando o dedo na ferida de 64. Por quê?

  1. Se Bolsonaro está falando é porque tem bala na agulha. De conversas fiadas estamos cheios. Seria interessante frisar, descrever quem era Santa Cruz, mas com todas as letras. Daqui a pouco vamos perpetuar bandidos e massacrar os mocinhos, em outras palavras, o poste fazer xixi no cachorro.

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