
Assim descrevo o comportamento do ex-presidente da República Jair Bolsonaro (PL), 70 anos, na tarde de terça-feira (10), durante o interrogatório feito pelo ministro Alexandre de Moraes, 56 anos, na Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal (STF). Bolsonaro foi Bolsonaro. Desde que iniciou a sua carreira parlamentar como vereador do Rio de Janeiro, em 1988, e depois deputado federal (1991 a 2018) e presidente da República (2019 a 2022), a sua principal característica é cortar os laços políticos e de amizade com seus seguidores que se tornam uma ameaça a sua carreira. Entre nós, jornalistas, costumamos dizer que o ex-presidente não volta para buscar os seus companheiros feridos no campo de batalha. Durante o interrogatório, sem nenhuma cerimônia negou que tivesse tido relação com os seus seguidores acampados na frente de unidades das Forças Armadas. Vamos conversar sobre o assunto.
Mas antes vamos seguir o manual do bom jornalismo e contextualizar a nossa conversa. Repito que não podemos partir do princípio de que o leitor sabe do que estamos falamos. Bolsonaro, ex-ministros e outros ex-funcionários de alto escalão do seu governo são acusados de terem montado uma organização criminosa, em 2022, com o objetivo de dar um golpe de estado. A organização foi formada pelo ex-presidente e outras 33 pessoas (27 militares reformados, da reserva e da ativa). A Procuradoria-Geral da República (PGR) dividiu o grupo em quatro núcleos. O primeiro a ser interrogado foi o “núcleo crucial”, assim chamado por reunir os articulares da tentativa do golpe. Cabe aqui uma lembrança. Nos tempos das máquinas de escrever nas redações, os repórteres que faziam a cobertura dos assuntos policiais chamariam este núcleo de “andar de cima”, onde se alojavam os chefes. Os interrogatórios começaram na tarde de segunda-feira (9) e terminaram na terça. Agora começa a fase de diligências complementares, quando a acusação e a defesa têm cinco dias para apresentar os seus pedidos de investigações adicionais. Terminada a contextualização, voltemos a nossa conversa. Ainda não vi pesquisas sobre a audiência das TVs que transmitiram a sessão da Primeira Turma do STF na terça-feira. Mas creio que tenha sido significativa, porque existia uma grande expectativa a respeito do desempenho do ex-presidente perante o ministro Moraes. Havia uma grande aposta de que ele perderia a calma e “enfiará os pés pelas mãos”, como se diz no interior gaúcho. Isso não aconteceu. A performance dele foi perfeita. Respondeu às perguntas de maneira serena, tom de voz com uma sonoridade agradável, e misturou, na medida certa, humor com informações. O comportamento do ex-presidente foi inédito?
Não foi. Lembro que durante o seu governo, sempre que uma das suas lambanças colocava em risco o seu cargo, ele recuava dizendo que tinha sido mal compreendido. Isso aconteceu várias vezes. Vou citar uma. Em 7 de setembro de 2021, o então presidente Bolsonaro participou das comemorações do Dia da Independência em Brasília (DF) e na cidade de São Paulo (SP). Nos dois discursos que fez, na Esplanada dos Ministérios, na capital federal, e na Avenida Paulista, ele questionou a segurança das eleições eletrônicas. E afirmou que não iria mais obedecer às determinações judiciais do ministro Moraes. Nos dias seguintes, o “mundo caiu da cabeça dele”. Foi alertado pelo seu círculo pessoal que poderia sofrer impeachment e depois ser preso por ter pregado a desobediência às ordens judiciais. E recuou. Passaram-se quatro anos, e na terça-feira, durante o interrogatório na Primeira Turma, Moraes perguntou ao ex-presidente sobre uma denúncia que ele fazia sempre que surgia uma oportunidade. Em uma delas, durante uma reunião em 5 de julho de 2022, acusou os ministros do STF Edson Fachin, 67 anos, e Luís Roberto Barroso, 67 anos, que na época integravam também o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), de terem recebido 50 milhões de dólares para fraudar as eleições daquele ano. O ex-presidente respondeu de maneira direta à pergunta. Começou a sua resposta dizendo que usa uma retórica política (maneira de influenciar os eleitores) desde que iniciou a sua vida parlamentar, em 1988, como vereador no Rio de Janeiro (RJ), que manteve nos seus 28 anos na Câmara dos Deputados e nos quatro anos que ocupou a Presidência da República. Bolsonaro não esclareceu durante o depoimento a estrutura da sua retórica. Mas, durante o seu mandato presidencial, nós jornalistas aprendemos que sua retórica consiste em incluir informações falsas que têm um grande poder de atrair a atenção das pessoas. Como foi o caso do suposto suborno dos ministros. Depois de ouvir o relato do ex-presidente, Moraes perguntou se ele tinha provas do suborno. Ele respondeu que não tinha provas. E pediu desculpas.
Seguindo a sua tática de, antes de responder às perguntas, falar sobre outro assunto, Bolsonaro aproveitou e disse que aqueles que acamparam na frente das unidades militares pedindo a volta do AI-5 (o Ato Institucional Número 5 foi uma lei de exceção da ditadura militar, promulgada em dezembro de 1968, que intensificou a repressão política no país) e que as Forças Armadas dessem um golpe de estado, “eram uns malucos”. Sem nenhuma cerimônia, o ex-presidente tentou cortar os seus laços políticos e de amizade com os bolsonaristas que saíram da frente dos quartéis em 8 de janeiro de 2023 e quebraram tudo que encontraram pela frente no Palácio do Planalto, no Congresso e no STF, em Brasília. Lembrei-me que ele e seus seguidores vêm tentando enfiar garganta abaixo da população brasileira o PL da Anistia, um projeto de lei que perdoa todos os envolvidos no 8 de janeiro e na trama golpista. Virou símbolo desta situação a cabeleireira Débora Rodrigues dos Santos, que usou um batom para escrever na Estátua da Justiça, em Brasília, a frase “perdeu, mané”. Ficou conhecida como “Débora do Batom” e está em prisão domiciliar – matérias na internet. Aqui vou lembrar ao leitor alguns detalhes que considero importantes. A trama golpista consistiu em realizar uma série de atos, que se iniciaram no começo de novembro de 2022, com o objetivo de provocar pânico e impedir que o presidente eleito da República, Luiz Inácio Lula da Silva (PT), 79 anos, assumisse o cargo – matérias na internet. O ato de 8 de janeiro foi o mais impactante por vários motivos. Primeiro, porque foi transmitido ao vivo pelas emissoras de TV, rádio, redes sociais e outras plataformas na internet. Além disso, as imagens das câmeras de segurança detalharam o que aconteceu dentro dos prédios invadidos. Tudo foi documentado por imagens e sons. Não é por outro motivo que o ministro Moraes usa essas imagens para sintetizar a história da tentativa do golpe. Bolsonaro tem insistido que não teve nada a ver com o 8 de janeiro. Cita que inclusive estava nos Estados Unidos naquele dia. Não é o que contam as 884 páginas do relatório final da Polícia Federal (PF). Ali diz que as digitais do ex-presidente estão vinculadas a uma série de fatos que desembocaram no 8 de janeiro. Como diz o ditado popular. Uma imagem vale mais que mil palavras. Este é o motivo pelo qual o ex-presidente quer ficar longe da turma do 8 de janeiro.