A gente aprende jornalismo na correria da apuração das informações do dia a dia. Ainda não inventaram uma escola melhor para lapidar as técnicas de apuração no repórter, ajustar a intensidade do bom senso no editor e calibrar a dose de desconfiança nas fontes e nos comentaristas, seja na política, na economia ou no futebol. Técnicas de apuração, bom senso e desconfiança são ferramentas essenciais para a prática do bom jornalismo. Elas são a vacina contra dois vírus mortais da nossa profissão: ausência de malícia e arrogância. Fiz esse “nariz de cera” para aplainar o caminho para conversar com os colegas e também com pessoas que não são do ramo sobre o caso que ficou conhecido como “cartão vermelho do Bolsonaro”. Resumindo: em entrevista ao site G1, Waldery Rodrigues, secretário especial da Fazenda do Ministério da Economia, falou sobre as estratégias para viabilizar o Renda Brasil, substituto do Bolsa Família. O dinheiro viria do congelamento por dois anos das aposentadorias e pensões e da diminuição no tempo do pagamento do seguro-desemprego. O assunto virou manchete nos jornais.
Em uma live, enfurecido, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) leu as manchetes dos jornais e foi curto e direto, lembrando que no seu governo ninguém vai tirar dinheiro de pobre para dar ao paupérrimo. Não queria mais ouvir falar no Renda Brasil e o Bolsa Família iria continuar. E prometeu dar cartão vermelho para quem insistisse com essa história. Nessa quarta-feira (15/09), o assunto principal dos noticiários era se ameaça do cartão vermelho foi para Paulo Guedes, ministro da Economia, ou para Rodrigues. O desdobramento dessa situação vamos saber mais adiante. Quem se saiu bem nessa história foi Bolsonaro. Antes de seguir com a conversa. Dos meus 40 e poucos anos de profissão, 30 e tantos foram passados em redação de jornal. Portanto, sei como as coisas acontecem. E não vou atirar pedra nas redações. Tomo a liberdade, ancorado no meu currículo profissional, de conversar sobre o fato com os meus colegas, principalmente os jovens que estão na correria diária, ganhando um salário baixo e com uma carga de trabalho enorme. Logo que surgiram as primeiras manchetes sobre o caso ligou um alarme na minha cabeça. Nesses quase dois anos de Bolsonaro no Planalto aprendi que tudo é possível em um governo que tem apoio de nazistas, terraplanistas, ocultistas, militares saudosistas da ditadura (1964 a 1985), neoliberais e oportunistas de todos os quilates, como Frederick Wassef, ex-advogado da família Bolsonaro que escondeu no seu sítio Fabrício Queiroz, envolvido no escândalo da rachadinha no gabinete do então deputado do Rio de Janeiro Fábio Bolsonaro, filho do presidente e hoje senador – há um vasto material na internet. Conversei com psicólogos e psiquiatras para entender a personagem do presidente.
A conclusão a que cheguei é que se pode esperar tudo de Bolsonaro. Menos uma coisa. Ele não é um suicida político. Ele é um sobrevivente. E sempre jogou para os seus eleitores. Ele já tinha dito que não tiraria dinheiro dos pobres para dar aos paupérrimos. Portanto, quando Rodrigues falou em congelar os rendimentos de aposentados, pensionistas e desempregados era para termos desconfiado de que alguma coisa estava errada. Claro, o chefe dele, o ministro Paulo Guedes, é um astuto operador do mercado financeiro. Nada acontece entre as quatro paredes do ministério sem que ele saiba. Guedes usou o seu subordinado como boi de piranha? Ou deixou a situação rolar para ver no que daria? Logo que ele começou a falar era para termos alertado os nossos leitores para essas possibilidades. Aliás, era nossa obrigação. Pelo que li, ouvi e vi nos conteúdos publicados, as notícias se limitavam ao fato em sim. Pouco ou nada de bastidores. Todos nós jornalistas sabemos que, a rigor, o Brasil tem dois governos: o de Bolsonaro, que é populista, e o de Guedes, neoliberal. São duas escolas de economia antagônicas. No meio desse fogo cruzado está o repórter, que faz a cobertura do dia a dia e que tem como uma das suas fontes os comentaristas políticos e econômicos. A maioria desse pessoal atira pedra em Bolsonaro e faz afagos a Guedes. Vejam bem. Na live, o presidente leu as manchetes dos jornais e insinuou que alguém havia falado demais no Ministério da Economia. E chutou o balde. Ele não disse. Mas está bem claro nas entrelinhas que culpou a imprensa, garantindo que não estava falando devido à pressão feita pelos jornais. Mas porque já havia dito que não faria aquilo. É do jogo. Agora, pelo fato de não termos contextualizado as matérias, principalmente as do dia a dia, ficou parecendo que jogamos uma bola no pé do presidente para ele jogar. Ou como dizem os colegas do esporte: “foi uma jogada ensaiada”.
Óbvio que não foi jogada ensaiada. O que aconteceu, então? Antes de responder à pergunta. A minha formação de repórter foi na cobertura de conflitos agrários pelos sertões do Brasil, do crime organizado nas fronteiras e das migrações. Aprendi que em questões de conflito, o repórter precisa esclarecer para o leitor a existência da disputa e quem é quem no rolo. No Brasil há um conflito sobre como tocar a economia entre Guedes e Bolsonaro. Agora respondendo à pergunta. O que aconteceu é que insistimos em tratar o governo como se fosse uma coisa única. Não é. Isso precisamos deixar claro a cada matéria publicada. Vejamos a coisa pelos olhos do nosso leitor. O Brasil está mergulhado na emergência sanitária imposta pela Covid-19, mais de 130 mil pessoas já morreram. Por conta disso a economia, que já vinha mal antes de crise, piorou e o desemprego é astronômico. Para todos os lados que se olha tem uma crise. Dentro de uma confusão dessas os espaços na imprensa a respeito da próxima eleição presidencial são generosos, porque o presidente Bolsonaro entrou em campanha pela reeleição no dia seguinte ao que assumiu o cargo. É do jogo. Mas também é do jogo informar ao nosso leitor qual é o plano do governo para tirar o país do atoleiro. A rigor não existe. Apenas um amontoado de ideias, como foi o caso do projeto Renda Brasil. A imprensa está perdendo o foco na cobertura do governo Bolsonaro.