É insuportável Porto Alegre sem o cheiro do churrasco do Acampamento Farroupilha

O cheiro do churrasco assado no Acampamento Farroupilha é uma das marcas de Porto Alegre em setembro. Foto: Arquivo Pessoal

Setembro costuma ser um mês de ventos persistentes em Porto Alegre. E dependendo do lado que eles sopram, uma vasta área da cidade é invadida pelo cheiro da carne assando nos braseiros do Acampamento Farroupilha. Pairando acima do acampamento há uma nuvem de fumaça que emana da lenha queimada pelos churrasqueiros. Durante todo o mês, correm para o acampamento gente de todos os cantos do estado e das terras do outro lado do Rio Uruguai, das fronteiras agrícolas desbravadas pela gauchada Brasil afora. No ano passado, entre acampados e visitantes, lá estiveram mais de 1,5 milhão de pessoas. No papel, o evento é para durar duas semanas. Mas vai mais longe. O ponto alto é o 20 de setembro, data da Revolução Farroupilha, uma luta dos gaúchos contra o governo do Brasil que durou de 1835 até 1845. É quando as famílias gaúchas desfilam a cavalo pelas avenidas da cidade. O acampamento começou em 1981.

Mas foi nas últimas duas décadas que se tornou uma grande atração. Claro, devido à emergência sanitária imposta ao país pela Covid-19, o acampamento e o desfile deste ano foram cancelados. As comemorações são virtuais. Mas o silêncio é real no local do acampamento, uma área no interior do Parque Maurício Sirostsky Sobrinho, a poucos metros das margens do Guaíba. Nos anos passados dava para ouvir de longe o toque de gaita, violão e a gritaria da gauchada. É tradição fazer uma homenagem na Semana Farroupilha (14 a 20 de setembro). Este ano é dedicado ao “Gaúcho sem Fronteira”, aqueles que deixaram o Rio Grande do Sul em busca de outro lugar para viver. É sobre isso que quero falar com os meus colegas repórteres, especialmente os mais jovens que estão na correria maluca das redações. Eu acompanhei a história do maior grupo que já migrou do estado, os agricultores que povoaram as fronteiras agrícolas do Brasil nos anos 50, 60, 70 e parte dos 80. A minha ideia inicial era escrever Mundo de Bombachas – referência à indumentária típica do gaúcho. Foi convencido de que era um exagero. Então sugeri As Américas de Bombacha. Também acharam um exagero. Daí fechamos no Brasil de Bombachas. Escrevi três livros, fiz várias reportagens e vídeos e mantive um blog sobre as conversas que tive com os migrantes e seus descendentes. O primeiro livro, O Brasil de Bombachas, foi publicado em 1996. Seguiram-se o Brasil de Bombachas – As novas fronteiras da saga gaúcha, em 2011, e, por último, De Pai para Filho na Migração Gaúcha, lançado em 2019.

Eu tive a sorte de encontrar vivos muitos dos pioneiros que povoaram as fronteiras agrícolas. Eles “comeram o pão que o diabo amassou”, como diz o dito popular para descrever dificuldades extremas. Na época, as estradas eram precárias, a assistência médica ficava muito distante e os telefones eram escassos e muito ruins. Aliás, hoje existe uma cidade no norte do Mato Grosso chamada Sorriso que tem esse nome graças à precariedade da linha telefônica. Para lá foram muitos colonos gaúchos descendentes de italianos. Sempre que ligavam para suas famílias no Rio Grande do Sul eram questionados sobre que tipo de cultura dava para plantar. Eles respondiam: “Só riso” (riso significa arroz em um dos dialetos italianos). Em Ji-Paraná, Rondônia, encontrei um gaúcho que, para tomar vinho tinto, ligava o ar-condicionado no frio máximo. Sempre digo que, quando o repórter deixa a redação, certos assuntos o acompanham para sempre e vez ou outra o emocionam. Em várias famílias de migrantes que entrevistei ouvi uma conversa que nunca vou esquecer. “Mas vai me dizer que vieste lá do Rio Grande para me entrevistar aqui?”. Aqui, eu quero falar com os jovens repórteres. O lado mais nobre da nossa profissão é resgatar a história que foi deixada de lado pelos historiadores.

O apego dos migrantes ao modo de vida gaúcho os ajudou a sobreviver. É a conclusão a que cheguei depois das três viagens que fiz escrevendo o Brasil de Bombachas – viagens que somam 60 mil quilômetros e 55 dias de estrada, entrevistando dezenas de famílias espalhadas pelas terras ao norte do Rio Uruguai e pelos países vizinhos. Creio que não é por outro motivo que existem 2,2 mil Centros de Tradição Gaúcha (CTG) fora do Rio do Grande do Sul. Em várias das cidades povoadas pelos gaúchos há desfiles na Semana Farroupilha. Para esse pessoal, o Acampamento Farroupilha de Porto Alegre é um orgulho. Eles acompanham tudo que se publica a respeito do assunto. Ontem, recebi uma ligação de um amigo de São Gabriel do Oeste, pequena cidade agrícola no Mato Grosso do Sul. Foi ele que me perguntou se eu estava com saudade do cheiro do churrasco do acampamento. Lembrei que era comum, nessa época, encontrar piquetes (grupos) cavalgando em direção ao acampamento. Também era comum ver nos mercados, principalmente no comércio ao redor do acampamento, pessoas comprando carne para o churrasco e outros víveres.

No meio da década de 80 eu estava no interior do Paraguai fazendo matéria sobre os brasiguaios – agricultores brasileiros que migram para lá. Em um final de tarde cheguei a um povoado chamado Santa Rita – hoje é uma cidade estruturada – para conversar com o pessoal. Não lembro o nome. Mas me foi apresentado um gaúcho que havia se estabelecido por lá. Conversa vai, conversa vem ele me contou que havia organizado o CTG Índio José. Lembro o que ele falou: “Vi que a gauchada estava vivendo aqui meio sem rumo. Então fizemos o CTG para lembrar das nossas danças, música e do churrasco”. O Índio José é hoje uma organização enorme. Lembro os meus colegas repórteres que cada frase que for escrita sobre a Semana Farroupilha é lida com grande interesse pelos que vivem no Brasil de Bombachas. Mesmo que o Acampamento Farroupilha seja virtual, ele vai deixar uma história. Não podemos esquecer disso.

2 thoughts on “É insuportável Porto Alegre sem o cheiro do churrasco do Acampamento Farroupilha

  1. Olá Carlos!
    Realmente fez falta o Acampamento Farroupilha em 2020. Umas duas vezes, pelo menos, durante setembro, passei ali nas avenidas Edvaldo Paiva e Augusto de Carvalho e senti um aperto no coração, de ver o Parque Maurício Sirotsky vazio, sem movimento, como ocorre nos demais meses do ano.
    Mas, por um bem maior que é a saúde de toda a população, não havia como fazer um evento desses, porque naturalmente gera aglomeração de pessoas.
    Apesar de eu não ser um praticante assíduo do tradicionalismo gaúcho – sou mais é espectador, eu e minha falecida esposa adorávamos frequentar o Acampamento Farroupilha. Que, aliás, tornou-se um evento mais comercial do que festivo. O cheiro de churrasco pairando no ar, as inúmeras exposições de arte e de artesanato, eram muito atrativas para nós. Várias peripécias tivemos naquele parque, e diversos churrascos e festas com uns amigos e conhecidos nossos frequentamos.
    Mesmo agora que não estou mais casado, quando tivermos uma imunização maior da população e voltarmos a ter grandes eventos autorizados, não hesitarei em dar um pulo no local para sentir a alegria da cultura gaúcha, até mesmo sozinho eu vou.
    Além de apreciar um bom churrasco, amo pizza, café, chocolate, adoro viajar, praia e sou busólogo, ou seja, adorador de ônibus.
    Abraço
    Guilherme – servidor público – Porto Alegre.

    1. Guilherme desejo paz e luz para a tua companheira. Sobre o churrasco. Pela foco da minha carreira de repórter sempre andei pelos rincões do Brasil e países vizinhos procurando histórias para contar. O acampamento traz para Porto Alegre um “jeitinho” de rincão. A fumaça do churrasco tem um odor que faz a mente viajar. Desejo que a gente seja vacinado logo e tudo volte ao normal. Um grande abraço. Te cuida, tchê.

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