A história é conhecida. Mas a estou usando para puxar outro assunto que considero relevante, que é a dificuldade de acessar a internet pelo celular no interior do Brasil. E que influência isso terá na campanha para as eleições municipais que se inicia no próximo dia 26. Vamos lá. No final do mês de agosto, a história do casal de agricultores Odilésio Somavilla, 54 anos, e Dejanira, 35, encantou os leitores e espalhou-se pelo Brasil. Eles construíram uma barraca de lona plástica e madeira no meio da plantação de soja para o filho Alan, 11 anos. A barraca foi erguida em um lugar com acesso ao sinal de celular, possibilitando que o menino acompanhasse, pela internet, as aulas virtuais do 6º ano do ensino fundamental da Escola Estadual Itaúba, em Estrela Velha, pequena cidade agrícola do Rio Grande do Sul. A família mora no interior do município, que tem 3,6 mil habitantes. O problema de Alan me lembrou o pesadelo que é o interior do Brasil para quem precisa acessar a internet pelo celular. Sou testemunha disso. Por ter focado a minha carreira de repórter em conflitos agrários (sem-terra, fazendeiros, índios e garimpeiros), migrações e crime organizado nas fronteiras, conheço e fiz reportagens em centenas de cidades dos rincões do país. Percorro o interior do Brasil com regularidade desde 1983, sendo que a viagem mais recente foi realizada em 2019. Na maioria desses lugares, o sinal para celular funciona bem na área central da cidade. Fora dali é preciso perguntar para os moradores “onde pega o celular?” E rezar para que o sinal seja da sua operadora.
A história de Alan teve um final feliz, ela foi publicada pela Rádio Gaúcha e pelos jornais Zero Hora e Diário Gaúcho, do Grupo RBS. Empresários ajudaram a viabilizar o fortalecimento do sinal de celular na região. Dito isso, vamos à nossa conversa. Comi o pão que o diabo amassou pelo interior do Brasil tentando enviar matéria (textos, fotos e vídeos) para a redação. É dentro dessa realidade que vai acontecer pela primeira vez na história do país uma campanha eleitoral municipal quase que totalmente pela internet, devido à emergência sanitária imposta pela Covid-19, que já matou mais de 130 mil brasileiros. Como eram feitas as campanhas até então? O maior número de votos na população rural se concentra nas regiões de pequenas e médias propriedades, que têm uma vida comunitária muito intensa com cerimônias religiosas, almoços, torneios de futebol, bailes, corridas de cavalo, bocha e carteado. São essas oportunidades que os candidatos aproveitam para vender o peixe deles. A outra oportunidade é o corpo a corpo com o eleitor, visitando pessoalmente as casas das famílias. Com algumas variações, principalmente no interior dos nove estados do Nordeste, no Pará e no Amazonas, é assim que têm funcionado as campanhas municipais. Teoricamente, este ano os encontros da comunidade estão restritos devido à emergência sanitária. As visitas à casa dos eleitores são complicadas. Conversei com cabos eleitorais e candidatos sobre o assunto. Na opinião deles, a questão da precariedade do acesso à internet prejudica o uso das redes sociais como instrumento de propaganda política. Como resolver o problema? Intensificando o uso das emissoras de rádio comerciais e comunitárias como a maneira mais eficiente de falar com os eleitores do interior dos municípios.
Um cabo eleitoral que trabalha em várias pequenas cidades rurais no oeste do Paraná fez uma observação interessante. Lembrou-me que, durante os velórios, os candidatos apareciam para prestar os pêsames à família e apertar a mão de todo mundo que lá estivesse. “Agora nem velório tem mais”, lamenta. Aliás, apertar a mão e distribuir abraços são marcas registradas dos candidatos no meio rural. Agora nada disso pode devido à Covid-19. Aqui quero chamar a atenção dos meus colegas e lembrar o que eu disse lá atrás no texto: “Teoricamente, os encontros nas comunidades…”. O fato é o seguinte. Não tem como fiscalizar. Fiz muitas coberturas de eleições municipais nesses rincões do Brasil. Sempre rende matérias interessantes, porque ali sobrevivem as tradições políticas do país. Um exemplo é a fidelidade partidária. No interior dos estados do Nordeste ainda sobrevive o “voto no cabresto”. Hoje designa a compra de voto. Antigamente era uma demonstração de poder de uma liderança política, no caso dos senhores dos engenhos, que tinham o seu curral eleitoral – grupos de famílias que votavam em quem eles mandavam. No final da década de 90, estive no interior de Alagoas fazendo uma reportagem sobre os pistoleiros dos senhores de engenho. Até a década de 60 fazia parte da tradição as famílias proprietárias de plantações de cana-de-açúcar ter como agregado um pistoleiro, que era usado para resolver assuntos políticos e outras disputas em que o dono da terra estivesse envolvido.
Há ainda os casos de muitas cidades nas fronteiras secas do Brasil, com destaque para a do Uruguai com o Rio Grande do Sul e a do oeste do Mato Grosso do Sul com o Paraguai, em que boa parte do eleitorado mora no país vizinho. Muitos só visitam o lado brasileiro para votar ou quando precisam dos serviços médicos do posto de saúde. Lembro que certa vez fiz a cobertura de uma eleição em Coronel Sapucaia (MS), cidade separada do município paraguaio de Capitán Bado por uma rua, e um candidato a vereador me contou que os brasileiros que moravam no outro lado da fronteira pediam obras (como estradas) como se lá fosse o Brasil. Arrematando a nossa conversa. A disputa municipal é a eleição mais acirrada do país. Nos locais onde há dificuldade para acessar a internet pelo celular as coisas devem continuar como sempre foram. Mesmo sem internet devem circular fake news, acredita um cabo eleitoral do norte do Rio Grande do Sul. “Vão espalhar que o candidato tal está com Covid-19 só para ele não ser recebido nas casas”. Não é de se duvidar. Nas sedes dos municípios onde o acesso à internet pelo celular existe deve se aprofundar e ser bem mais agressivo o bate-boca pelas redes sociais. Principalmente nos grupos de aplicativos familiares. Vai ser uma eleição municipal de boas histórias para contar. Podem apostar, colegas repórteres.