Não tinha me dado conta de que, pela primeira vez na história policial do Brasil, os jogos clandestinos estão ao alcance das autoridades. Nos últimos dias, a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) começou a notificar as operadoras de internet para que eliminem do território nacional mais de 2 mil empresas proprietárias de bets, como são chamadas as casas de apostas esportivas online. As 93 empresas proprietárias de 205 bets que encaminharam a sua regulamentação estão autorizadas a continuar operado no país, além de outras 18 que atuam em nível estadual.
Antes de continuar com a nossa conversa, vou seguir o manual do bom jornalismo e contextualizar o assunto. Não posso partir do princípio de que todos os leitores, incluindo os repórteres que trabalham nos noticiários do dia a dia, saibam o que está acontecendo. Vamos lá. Essa história faz parte do processo de regulamentação dos sites de apostas online no Brasil, que foram legalizados em 2018 pelo então presidente da República Michel Temer (MDB), 84 anos. E não foram regulamentados pelo seu sucessor, Jair Bolsonaro (PL), 69 anos, durante o seu mandato (2019-2022). Apenas em 2023, o atual presidente, Luiz Inácio Lula da Silva (PT), 78 anos, editou uma medida provisória regulamentando as apostas online, concedendo prazo até o último dia 10 de outubro para que as bets regularizassem a sua situação junto à Secretaria de Prêmios e Apostas, do Ministério da Fazenda. O enquadramento das bets ganhou urgência depois que o Banco Central divulgou que somente em agosto 2 milhões de beneficiários do Bolsa Família gastaram R$ 3 bilhões em apostas. Além disso, a Confederação Nacional do Comércio (CNC) informou que 1,3 milhão de brasileiros ficaram inadimplentes no primeiro semestre de 2024 devido a apostas. Terminada a contextualização, retornamos a nossa conversa. O que aconteceu? Até a legalização dos jogos online no governo Temer o grande volume de dinheiro gasto em apostas ilegais era com o que podemos chamar de jogos presenciais: bicho, cassinos e casas de bingo clandestinos. Aqui é o seguinte. Nunca se publicou um número com alguma credibilidade a respeito da soma em dinheiro que os brasileiros torram em jogos legais e ilegais. O primeiro número confiável foram os R$ 3 bilhões gastos pelos beneficiários do Bolsa Família. Agora podemos afirmar, com um bom grau de confiabilidade, que a quantia apostada em jogos online é muito, mas muito mesmo, superior à que é gasta nos jogos presenciais. Até porque envolve um número bem maior de apostadores. Portanto, estamos falando de dinheiro grosso.
Há mais uma diferença entre os jogos presenciais e os online. No presencial, a polícia dava uma batida e fechava alguns pontos de jogo do bicho. Mas, no mesmo dia, eles voltavam a funcionar em outro lugar. Os donos dos cassinos e casas de bingo ilegais viviam uma verdadeira gincana com as autoridades. Especialmente aqueles que tinham uma clientela de alto poder aquisitivo. Certa vez, entrevistei um dono de cassino que operava em endereços caros de Porto Alegre e de cidades da Serra gaúcha. Ele me disse que a grande jogada era se antecipar à batida policial para evitar que os seus clientes saíssem nas páginas policiais dos jornais. Lembro-me de ter perguntado como conseguia se antecipar à polícia. Ele não respondeu. Posso afirmar, baseado no que aprendi em 40 anos envolvido em matérias investigativas sobre jogos ilegais, que mesmo se todos os efetivos policiais do Brasil fossem colocados na rua não se conseguiria fechar as casas de apostas ilegais. A situação é diferente com os jogos online, como disse lá na abertura da nossa conversa. Porque basta os técnicos das operadoras de internet apertarem meia dúzia de botões e os sites das bets ficarão indisponíveis no país. Claro, os ilegais podem utilizar alguns estratagemas, como as redes VPNs, que “disfarçam” a identidade dos sites, para recolocar no ar algumas bets. Mas elas podem ser facilmente rastreadas pela Anatel. Pelo simples motivo de que as empresas que legalizaram sua atividade vão colaborar com o governo, por terem interesse em eliminar a concorrência desleal.
Pelo meu envolvimento com reportagens sobre jogos ilegais, sempre li e me atualizei a respeito do assunto. Há uma espécie de unanimidade entre os especialistas que a maior defesa que o governo tem contra as máfias que brotam por todos os cantos no setor é a legalização da atividade. A legalização dos jogos online no Brasil ainda tem um bom caminho para percorrer. Mas iniciou a caminhada, dando um passo importante, que foi a regulamentação e a legalização. Lembro que através dos tempos os bicheiros têm sido uma das grandes fontes de corrupção policial. Certa vez, entrevistei um jovem que ralou muito para conseguir passar em um concurso da Polícia Civil. No primeiro mês de trabalho, em uma delegacia, ele foi avisado do “esquema do bicheiro”. E perguntaram-lhe se ele estava dentro ou fora. Não tinha opção: ou estava dentro do esquema ou teria que procurar trabalho em outro lugar. Ele saiu da polícia e fez carreira como advogado trabalhista. Ajudou-me muito a entender como a história dos bicheiros transitava entre as quatro paredes das delegacias policiais. Tenho escrito que os empresários do setor das bets são pessoas experimentadas que lidam com o ramo de apostas há muitos anos e sabem como sobreviver no emaranhado de situações limites que existem na sua atividade. Tive oportunidade de conversar com um argentino que é CEO de uma empresa de apostas online. Ele acredita que o setor irá se consolidar no Brasil. Há uma tecla que bato sempre que tenho oportunidade quando escrevo sobre apostas. É fundamental que o governo garanta a honestidade do jogo. E que tenha um sistema de acompanhamento médico e psicológico para dar apoio aos jogadores compulsivos. O vício no jogo é um caso de saúde pública. Falei sobre isso no início do mês, quando fiz o post Jogador compulsivo é um caso de saúde pública. A função do governo é regular os jogos online.